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Nação Jurídica \
27 de janeiro de 2014

O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, completa um ano nesta
segunda-feira (27) sem a condenação de culpados e sem nenhum dos réus do
processo criminal preso. Vários processos correm em diferentes esferas
da Justiça do Rio Grande do Sul, mas a demora para apontar os
responsáveis pelo saldo de 242 mortes e centenas de feridos causa
revolta entre os familiares das vítimas e deixa no ar uma sensação de
impunidade.
Nos dias seguintes ao incêndio, as autoridades concluíram que uma série
de erros contribuiu para o resultado trágico. Eles vão desde a
superlotação da boate, passando pela imprudência dos músicos no uso de
artefatos pirotécnicos impróprios para ambientes fechados até as falhas
de fiscalização do poder público, que permitiu o funcionamento de um
estabelecimento sem condições de segurança e em situação irregular.
Até agora, no entanto, ninguém foi responsabilizado por esses erros.
Principais acusados, os sócios da casa noturna, Elissandro Spohr, o
Kiko, e Mauro Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira,
Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, ficaram quatro
meses presos, mas desde maio passado aguardam em liberdade por um
julgamento que pode demorar anos.
“Quando eles foram soltos, ali eles fizeram uma segunda ruptura na nossa
vida”, diz Adherbal Ferreira, que perdeu a filha Jennefer, de 22 anos, e
desde então tem se dedicado à Associação dos Familiares de Vítimas e
Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), entidade que reúne
cerca de 800 pessoas e da qual é presidente.
Além dos sócios da casa noturna e dos integrantes da banda, bombeiros
também integram a lista dos réus nos cinco processos que tramitam na
Justiça comum e militar do estado. Mas a ausência de servidores da
prefeitura, que chegaram a ser indiciados pelo Polícia Civil, mas
acabaram não sendo denunciados pelo Ministério Público (MP), é o que
mais incomoda os familiares das vítimas.
“Nunca, em nenhum dia, essa boate, que funcionou por quatro anos, teve
todos os documentos prévios que a legislação exigia. O que ocorreu para
essa boate ficar aberta durante tanto tempo sem os requisitos
necessários que a lei exigia? É isso o que queremos saber agora”, diz
Luiz Fernando Smaniotto, um dos advogados da associação.
Para responder a essa pergunta, dois novos inquéritos ainda estão
abertos na Polícia Civil para investigar fatos que não foram
esclarecidos na primeira investigação. Um deles trata de irregularidades
na liberação dos alvarás municipais para a Kiss e o outro de supostas
fraude cometida pelos antigos proprietários para a obtenção de licenças.
De acordo com a delegada Luiza Souza, responsável pelo caso, a Kiss
nunca teve a documentação necessária para funcionar. Ou ela não tinha
algum alvará ou o documento foi liberado sem o cumprimento dos
requisitos. Entre as irregularidades apontadas pela polícia também estão
falsificações no Estudo de Impacto de Vizinhança, necessários para a
autorização de funcionamento do empreendimento.
Os dois inquéritos devem ser concluídos até fevereiro. A polícia não
adianta quantas pessoas serão indiciadas nem por quais motivos, mas a
expectativa dos familiares das vítimas é que integrantes da prefeitura
de Santa Maria estejam na lista por atos de improbidade administrativa.
“Crime é mais complicado, porque a gente tem de comprovar o dolo, se
essas licenças foram liberadas para beneficiar, para algum proveito de
alguém, o que até o presente momento a gente não tem. Talvez possa se
chegar em responsabilização administrativa, política, enfim, questões de
improbidade”, diz a delegada.
O prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB), se defende. Ele diz
que o próprio MP e o Poder Judiciário determinaram o arquivamento de um
apontamento feito pela polícia no primeiro inquérito, por homicídio
culposo. Os indiciamentos contra outros dois secretários municipais e
dois servidores também foram arquivados pelo MP.
“Eu compreendo a manifestação dos pais e familiares, porque é uma
manifestação de inconformidade com uma tragédia que todos nós
lastimamos. Mas esta questão da responsabilização não pode ser palpite
nem desejo. Porque não se faz justiça com injustiças. Se faz justiça
verificando a lei e verificando as responsabilidades individuais
específicas. No caso, não tem nenhum servidor da prefeitura, nem
secretário, nem prefeito, que esteja sendo responsabilizado”, argumenta
Schirmer.
O MP aguarda a conclusão dos novos inquéritos da Polícia Civil para
decidir se vai oferecer novas denúncias na esfera cível. O processo
retornou para a análise dos promotores de Santa Maria, por determinação
do Conselho Superior do órgão. Em agosto, oito bombeiros foram
denunciados pelo órgão. Funcionários da prefeitura, nenhum.
“Não se captou ou pelo menos não se conseguiu nenhum elemento de prova
que indicasse que a prefeitura ou os agentes da prefeitura tivessem
agido com ma-fé ou dolo quando liberaram o funcionamento da boate”,
justifica o promotor Joel Dutra.
Complexidade do processo causa demora
De acordo com o presidente da subseção de Santa Maria da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), Péricles Lamartine da Costa, a sensação de
impunidade reclamada pelos familiares não é real. Ele diz que, pela
dimensão da tragédia na Kiss e pela complexidade dos processos na
Justiça, a demora para a aplicação de qualquer pena é natural.
“Pelo número de pessoas envolvidas e pela quantidade de testemunhas para
serem ouvidas, nós sabemos que isso vai ser um procedimento demorado.
Mas é preciso respeitar a natureza do processo, do direito à ampla
defesa, ao contraditório. É arriscado acelerar o processo, sob pena de
provocar a nulidade. As pessoas têm de entender que a busca por justiça
demanda tempo. É preciso esperar e ter paciência”, avalia.
Desde 27 de janeiro de 2013, esperar é só o que fazem muitos dos
familiares das 242 vítimas. Esperar por um filho que jamais vai chegar
em casa depois do aula ou por uma razão para seguir tocando a vida. E
por justiça. Adherbal e outros membros da associação prometem seguir na
luta até que os culpados pela tragédia sejam responsabilizados.
“Aqueles que devem pagar vão pagar, sim. Eu acho que Deus vai fazer
justiça, com certeza absoluta. Mas Deus quer também a justiça do homem.
Então cabe a nós assumir essa posição e dizer para o país, não só para
Santa Maria, que basta. Isso é falcatrua, isso é indecência, isso é
imoralidade, isso é jeitinho. Tem de seguir as regras, as leis que estão
aí postas só no papel, vamos botar em prática”, diz Adherbal.
Veja como está o andamento dos processos na Justiça
Esfera criminal
- Acusação: homicidios dolosos e tentativas de homicídio
- Réus: Elissandro Spohr (sócio da boate), Mauro Hoffmann (sócio da
boate), Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda Gurizada
Fandangueira) e Luciano Augusto Bonilha Leão (produtor da Gurizada
Fandangueira).
Principal processo do caso Kiss, o que apura crime contra a vida ainda
está em fase de instrução na 1º Vara Criminal de Santa Maria. Desde o
final de junho, quando começaram os depoimentos, foram ouvidas 92
pessoas relacionadas pela defesa e acusação como vítimas. Outras 25
ainda aguardam para prestar depoimento, em datas a serem marcadas.
Depois, serão intimadas pelo menos mais 71 testemunhas e outros 29
peritos, de acordo com Tribunal de Justiça (TJ-RS). Os réus também serão
ouvidos.
A última movimentação ocorreu na semana passada. A juíza substituta
Karla Aveline de Oliveira negou o pedido do advogado de Elissandro Spohr
para que fossem ouvidos os 636 sobreviventes da tragédia. A magistrada –
que cobre as férias do juiz responsável pelo caso, Ulysses Fonseca
Louzada, – também determinou que o IGP aguarde o retorno do juiz titular
para coletar material a fim de realizar nova perícia no prédio da boate
em outra data. O procedimento estava marcado para 23 de janeiro. De
acordo com a Justiça, o julgamento não sai antes de 2015, na melhor das
hipóteses.
Esfera criminal
- Acusação: falsos testemunhos
- Réus: Elton Uroda (ex-sócio da Kiss) e Volmir Panzer (contador).
O ex-sócio da Kiss, Elton Cristiano Uroda, e o contador das empresas da
família Sphor, Volmir Astor Panzer, foram denuncidos no dia 2 de abril
por falso testemunho. A ação ainda se encontra em fase de depoimentos.
Só uma testemunha de acusação foi ouvida até agora.
Esfera criminal
- Acusação: fraude processual
Réus: Gerson da Rosa Pereira (major) e Renan Severo Berleze (sargento).
Dois bombeiros foram denunciados pelo MP em 2 de abril por supostamente
terem incluído documentos no arquivo da boate Kiss no Corpo de Bombeiros
no dia seguinte à tragédia. O sargento Renan Berleza aceitou uma
proposta de suspensão condicional do processo e a ação contra ele foi
encerrada. A assistência de acusação contestou o acordo, mas o juiz
manteve o benefício. Já o major Gerson Pereira não aceitou a oferta e
segue sendo processado.
Esfera militar
- Acusação: Artigo 312 do CPM (inserir declaração falsa em documento público)
- Réus: tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs (ex-Comandante do 4º
Comando Regional de Bombeiros), o tenente-coronel da reserva Daniel da
Silva Adriano e capitão Alex da Rocha Camillo (ex-Chefes da Seção de
Prevenção a Incêndios).
- Acusação: Artigo 324 do CPM (inobservância de lei, regulamento ou instrução)
- Réus: sargento Renan Severo Berleze, sargento Sérgio Roberto Oliveira
de Andrades, soldado Marcos Vinícius Lopes Bastide, sodado Gilson
Martins Dias e soldado Vagner Guimarães Coelho.
Na Justiça Militar, oito bombeiros respondem por condutas com inserir
declaração falsa em documento público e conduta negligente. Desde
agosto, foram ouvidas 18 das 19 testemunhas de acusação – uma apresentou
atestado médico e o depoimento foi remarcado para a primeira semana de
março. Após essa fase, abrem-se os prazos para a defesa indicar as suas
testemunhas. O processo ainda terá de passar por outras etapas antes do
julgamento, que não deve ocorrer antes do segundo semestre, de acordo
com o Tribunal de Justiça Militar.
Esfera cível
- Acusação: Artigo 324 do CPM (inobservância de lei, regulamento ou instrução)
- Réus: coronel Altair de Freitas Cunha, o tenente-coronel Moisés da
Silva Fuchs, major da reserva Daniel da Silva Adriano e capitão Alex da
Rocha Camillo.
Quatro bombeiros também respondem na esfera cível por improbidade
administrativa, em ação civil pública ajuizada pelo MP em julho.
Atualmente, o processo aguarda a resposta do Estado do Rio Grande do
Sul, para que manifeste ou não o interesse em participar. No
entendimento do juiz responsável, os atos eventualmente praticados pelos
servidores públicos terão desdobramentos para o Estado, que já responde
a ação indenizatória movida pela família das vítimas e sobreviventes da
tragédia.