O Marco Civil foi aprovado. E agora, o que vai mudar na internet brasileira?
Por Caio Carvalho
FONTE: CANALTECH
Há quase três anos, tramitava na Câmara dos Deputados o chamado Marco
Civil, um projeto de lei que reúne os direitos, deveres e garantias das
empresas e usuários de internet no
Brasil. Ao longo dos últimos meses, a proposta desse conjunto de sanções
ganhou força no Congresso Nacional e nas redes sociais não apenas para
regulamentar o uso da web em território, mas também servir de exemplo a
países que ainda não possuem leis voltadas para o mesmo objetivo.
O projeto foi aprovado na Câmara em 25 de março deste ano, até que finalmente, na noite desta terça-feira (22), recebeu a mesma aprovação pelo Senado. O último passo aconteceu na manhã de hoje (23), quando a presidente Dilma Rousseff sancionou oficialmente a lei durante o NET Mundial,
encontro internacional realizado em São Paulo que discute a governança
na web. "A internet que queremos só é possível em um cenário de respeito
aos direitos humanos, em particular à privacidade e à liberdade de
expressão. Os direitos que as pessoas têm off-line também devem ser
protegidos on-line. (...) O Brasil defende que a governança da internet seja multissetorial, multilateral, democrática e transparente", destacou Dilma.
De 2011 para cá, o texto original do projeto sofreu alterações. Algumas delas, como já explicamos em uma matéria no ano passado, foram bastante polêmicas, como a queda da obrigatoriedade de instalação de data centers no Brasil –
uma ação que pode ter beneficiado várias entidades de tecnologia, como
Google e Facebook, mas que, involuntariamente, contribuiu para que o
Marco Civil fosse votado com mais rapidez.
Além disso, há ainda
muita gente que desconhece qual o verdadeiro significado do Marco Civil.
Não apenas para o Brasil, mas também para o resto do mundo. Por isso, o
Canaltech preparou um guia com os principais pontos do texto e o que vai mudar (ou permanecer) daqui para frente na internet brasileira.
Afinal, o que é o Marco Civil?
Trata-se
de uma espécie de Constituição que reúne as leis básicas que definem os
princícipos, garantias, direitos e deveres para quem usa internet
no Brasil. A medida é válida para os mais de 100 milhões de usuários
conectados e também para empresas que usam a rede ou oferecem qualquer
tipo de serviço, programa, produto ou infraestrutura que garante o
funcionamento da web para outras pessoas. Isso engloba desde gigantes da
tecnologia, como Google, Apple e Facebook, como também órgãos
nacionais, incluindo o Ministério Público e a Polícia Federal.
Por que o projeto demorou para ser votado?
O deputado Alessandro Molon, relator do projeto do Marco Civil da Internet (Foto: Divulgação)
O
governo já estudava criar um conjunto de regras para web quando Luiz
Inácio Lula da Silva ainda era presidente, mas a proposta só começou a
ganhar forma quando o deputado Alessandro Molon (PT-RJ) foi escolhido
como relator do projeto. Molon, que era professor de história, realizou
diversas palestras e audiências públicas para discutir o projeto, sempre
dando espaço aos cidadãos que quisessem interagir e ajudar no
desenvolvimento do texto.
O problema é que, naquela época, o
ministério Dilma não analisou o caso com atenção porque considerava
outras pautas mais importantes, entre elas definir uma base de apoio no
Congresso. Soma-se a isso um dos principais motivos que atrasaram a
votação do Marco Civil na Câmara: a neutralidade de rede. Vamos explicar
melhor logo abaixo, mas basicamente é um trecho que garante igualdade
de acesso a qualquer conteúdo na internet para todos os usuários.
As
empresas e provedoras, por outro lado, queriam exatamente o oposto, ou
seja: oferecer planos e serviços com diferentes velocidades de acesso e
preços. A justificativa das companhias era de que essa estratégia daria
mais liberdade de escolha ao usuário, que poderia selecionar um pacote
mais barato e apenas com o conteúdo desejado. Para se ter ideia, a
neutralidade de rede foi o ponto mais discutido até o último momento
antes da votação do projeto seguir para o Senado, e quase chegou a ser
retirada da proposta.
Fora isso, Molon fez algumas mudanças no
texto original para agradar a outros partidos, como o DEM e o PSDB.
Mesmo assim, a proposta ainda não tinha muitos aliados no Congresso e
era desconhecida pela maioria da população. Talvez um dos poucos casos
de grande repercussão que acendeu o Marco Civil foi o da atriz Carolina
Dieckmann, que em 2012 teve fotos íntimas divulgadas na internet depois de ter o computador invadido. O governo até criou uma lei – conhecida popularmente como Lei Carolina Dieckmann –
que já está em vigor e pune quem acessa arquivos de outras pessoas sem
autorização, mas nada tão complexo quanto o projeto do Marco Civil.
O
projeto só ganhou relevância nacional em junho do ano passado, logo
após as denúncias do ex-técnico da Agência de Segurança Nacional (NSA)
dos Estados Unidos, Edward Snowden. Os documentos comprovaram um
gigantesco sistema de espionagem online conduzido há anos pelo órgão
norte-americano, e que afetava desde usuários comuns até grandes
companhias, diplomatas e chefes de Estado. Entre eles a Petrobrás e
Dilma Rousseff. A presidente inclusive cancelou uma visita oficial a
Barack Obama em Washington e criticou o monitoramento da NSA na abertura da Assembleia Geral da ONU.
(Foto: AP)
Foi
o pontapé inicial para que o Marco Civil se destacasse na Câmara. Desde
outubro de 2013, o projeto circulou com pedido de urgência feito pela
própria Dilma, que se encontrou com Molon diversas vezes para saber como
andava a proposta. Em uma dessas visitas, ela sugeriu que o texto
incluísse um trecho para obrigar empresas de tecnologia a construir data
centers no Brasil. A estratégia seria uma medida de segurança para
evitar outros possíveis casos de espionagem.
Fato é que a
ascenção do Marco Civil ganhou apoio não apenas da presidente e de
vários políticos, mas também de algumas personalidades. Entre os que
defenderam a aprovação do projeto estão o cantor e ex-ministro da
Cultura, Gilbero Gil, os humoristas Gregório Duviver e Rafinha Bastos, o
ator Wagner Moura, o filósofo francês Pierry Lévy e o britânico Tim Berners-Lee, considerado o cridador da rede mundial de computadores, a WWW. Órgãos como o Procon e Idec também apoiaram a causa.
O que muda daqui para frente?
É
importante lembrar que o Marco Civil passou por mudanças nos últimos
três anos, mas poucas foram realmente significativas. Uma delas foi
justamente a instalação de servidores no país, que não obriga mais que
as companhias construam novos data centers localmente. Apesar da
alteração, o projeto deixa claro que as entidades de internet
que prestam serviços aos brasileiros ficarão submetidas à legislação do
país, mesmo se forem empresas com sedes em outros países.
Existem três pilares fundamentais que vão reger o uso de rede no Brasil. Veja abaixo.
- Neutralidade de rede
(Foto: Divulgação/Samsung)
O
princípio de neutralidade de rede também foi outra questão defendida
pela presidente Dilma logo após as revelações de Edward Snowden.
Aprovada junto ao projeto, a medida garante que os provedores não podem
ofertar conexões diferenciadas. O que fica determinado é o seguinte: a
partir de agora, o usuário tem, por lei, o direito de acessar qualquer
conteúdo na web com a mesma velocidade – de acordo com o valor do pacote
contratado. As empresas poderão continuar vendendo planos de dados
diferenciados por velocidade, mas com igualdade de navegação.
Dessa forma, ao comprar um plano de internet,
o usuário paga somente pela velocidade contratada e não pelo tipo de
página em que vai navegar. Por exemplo, se ele acessar um serviço de
e-mail com velocidade de 1 Mbps, que correspondem à velocidade do plano
contratado, o mesmo 1 Mbps deverá
funcionar quando ele for visualizar um vídeo no YouTube ou abrir um site
qualquer. Além disso, a regra prevê que a velocidade de acesso daquele
pacote não seja reduzida.
A neutralidade de rede ainda será regulamentada por meio de decreto após consulta à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e o Comitê Gestor da Internet (CGI).
Em seguida, a lei seguirá para o Poder Executivo, que vai detalhar como
será aplicada e quais serão as exceções. Essas exceções só vão ocorrer
em "serviços de emergência" ou transmissões de vídeos ao vivo, que
poderão ter maior prioridade do que outros serviços, como acesso a
e-mails.
- Privacidade
(Foto: Reuters)
Para
evitar o monitoramento cibernético, o Marco Civil determina que todo
usuário de internet não terá sua privacidade violada, nem seus dados
comercializados livremente por provedores de internet. Será proibido vigiar, filtrar, analisar ou fiscalizar o conteúdo acessado pelo internauta.
A única exceção à nova lei é por meio de ordens judiciais para fins de
investigação criminal solicitadas pelo próprio usuário ou em casos de
justiça, como já acontece em situações que exigem a quebra de sigilo
telefônico.
Sobre o armazenamento de dados, o projeto assegura a
proteção de dados pessoais e registros de conexão. As empresas serão
obrigadas a guardar os registros das horas de acesso e do fim da conexão
dos usuários pelo prazo de seis meses, mas essa prática deverá ser
feita em um ambiente controlado da prórpia companhia, ou seja, não
deverá ser feito por outras organizações.
Todos os sites de internet
deverão avisar o usuário se seus dados ficarem armazenados, e não será
permitido guardar informações adicionais que não sejam necessárias ou
que não foram autorizadas pelo internauta.
Isso vai garantir, entre outros objetivos, que as empresas não utilizem
fotos e dados para fins comerciais sem que o usuário saiba ou libere o
uso da própria imagem. Esta é uma das razões pelas quais é essencial ler
os termos de uso do site acessado, pois é lá que estão essas
informações.
Também fica proibido que as companhias colaborem com
órgãos de informação estrangeiros divulgando qualquer dado pessoal e
registros de conexão do usuário. As
corporações que descumprirem a lei poderão ser penalizadas com
advertência, multa e até proibição definitiva de suas atividades, além
de penalidades administrativas, cíveis e criminais. Há ainda uma regra
que determina que as empresas criem mecanismos de segurança para
garantir, por exemplo, que os e-mails só serão lidos pelos emissores e
destinatários da mensagem. Além disso, o usuário terá o direito de pedir
a exclusão definitiva dos dados fornecidos a sites em que ele preencheu
determinados cadastros, como redes sociais e provedores de e-mail.
- Retirada de conteúdo
(Foto: AAP)
De acordo com o projeto, provedores de conexão à internet
e sites não serão responsabilizados pelo conteúdo publicado por
internautas e terceiros. Segundo Alessandro Molon, o objetivo da lei é
fortalecer o artigo 20 do Marco Civil, que garante a liberdade de
expressão na web, e impedir a chamada "censura privada". Isso significa
que não cabe ao provedor de rede escolher qual conteúdo fica ou sai do
ar, já que não é obrigação da empresa decidir quais manifestações dos
internautas são legais ou não.
A proposta prevê que um conteúdo
poderá ser retirado do ar somente com ordem judicial que vai definir se a
mensagem, foto, vídeo ou documento é ofensivo e denigre a vítima que
aparece naquele conteúdo. A lei deve beneficiar principalmente usuários
vítimas da "pornografia da vingança", quando vídeos e imagens de
relações íntimas são expostas na internet
pelo namorado ou namorada. Os provedores de aplicações (ex: Facebook,
Google) só serão punidos se não acatarem a decisão da justiça de retirar
tais conteúdos do ar.
"À Justiça é que cabe dizer o que é legal
ou ilegal. Se um provedor de conteúdo – uma rede social, por exemplo –
receber uma notificação de alguém que se sinta incomodado por qualquer
comentário de um internauta e não retirar esse conteúdo, então passará a responder por ele", explicou Molon.
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