Audiência de
custódia e a resistência das almas inquisitoriais.
Vejam o vídeo do professor Luiz Flávio Gomes
no endereço abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=UKhVnl-HQgk
Pertinência da audiência de
custódia. Hoje,
24/2/15, terão início em caráter experimental, em São Paulo, as chamadas
audiências de custódia. O sistema judicial do mundo inteiro mais civilizado que
o brasileiro (nesse ponto, ao menos) já fez isso. O prazo para apresentar o
preso ao juiz vai de 6h (caso da Argentina) a 72h (caso da Espanha): Chile,
24h; Colômbia, 36h; México, 48h; Peru e EUA 48h etc. É preciso ter uma alma
exorbitantemente inquisitorial e exageradamente tribalista (tribo engravatada
de cima que odeia a tribo pé de chinelo de baixo, que é a única que é presa em
flagrante pela polícia militar) para se posicionar contra tais audiências.
Para
proteger a liberdade das pessoas, diz a Constituição brasileira (art. 5º, inc.
LXI) que ninguém pode ser preso sem ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente, salvo o caso do flagrante (ou de transgressão militar).
A prisão em flagrante é um ato administrativo (ainda que concretizada por
particular, como permite o art. 302 do CPP). Como ato administrativo, que
independe de ordem judicial, deve ser rigorosamente fiscalizado pelo
Judiciário. Daí a pertinência da audiência de custódia (apresentação do preso em 24h a um
juiz, para analisar sua legalidade, necessidade e conveniência), que se reveste
da maior importância protetiva.
Onde está prevista essa audiência de custódia? Na Convenção Americana
de Direitos Humanos (art. 7º, 5), subscrita e ratificada pelo Brasil. Vigente
desde novembro de 1992, diz: “toda pessoa detida ou retida deve ser
conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada
pela lei a exercer funções judiciais”. Qual o valor dessa Convenção? Vale
mais que a lei e menos que a Constituição (disse o STF, no RE 466.343-SP). Tem
valor superior à lei. É totalmente compatível com a Constituição brasileira.
Trata-se de norma vigente no ordenamento jurídico (mas ignorada pela quase
totalidade dos operadores respectivos). Se a Convenção Americana vale mais que
a lei, dispensa a elaboração de uma lei para o reconhecimento desse direito.
Quando o STF eliminou a possibilidade de prisão civil de depositário infiel
(que envolve ricos e pobres), aplicando diretamente a Convenção Americana,
ninguém falou em exigência de lei. Porque ela é desnecessária.
Qual o
problema? Fixar o prazo em que o preso deve ser apresentado ao juiz. Que ele
deve ser apresentado não há dúvida. Resta apenas saber em qual prazo isso deve
acontecer. O Tribunal de Justiça de SP (com o apoio do CNJ e do Ministério da
Just8iça) regulamentou o assunto (e fixou o prazo de 24h para a apresentação do
preso; poderia ser até 48h, sem perda da razoabilidade). Hoje, somente a
“papelada” do flagrante vai ao juiz em 24h. Mas essa papelada (que vem da
nefasta tradição ibero-americana) não substitui a apresentação do preso em
pessoa, estabelecendo-se em seguida o contraditório entre o acusador e a defesa
(para se saber se a prisão em flagrante se converte em prisão preventiva ou se
o preso é liberado sob determinadas condições).
Saiba mais
Almas inquisitoriais. Parcelas das entidades policiais, do Ministério
Público e da própria Justiça estão criticando a medida. Almas errantes
impregnadas de inquisição e de tribalismo. Francisco (nome fictício) estava no
sofá quando a polícia quebrou o portão e invadiu a sua casa gritando, com armas
em punho (veja http://apublica.org/2015/02/presosprovisorios/); o coletor de
lixo não reagiu nem para dizer que era trabalhador de carteira assinada; uma
pessoa foi sequestrada; depois de liberada disse que o sequestrador tinha uma
tatuagem no braço; a polícia olhou seus arquivos e logo chegou ao Francisco,
que ficou preso durante dois meses, porque “reconhecido” pelos policiais pela
“tatuagem”; a vítima, quando o viu, descartou prontamente sua participação no
crime; Francisco foi liberado (sem nenhuma indenização) e perdeu o emprego. Uma
vida, uma família e um emprego foram destroçados (veja Agência Pública).
Tirania policial e estatal. Milhares de prisões acontecem assim diária e
anualmente. A audiência de custódia pode ser um corretivo para esses abusos.
Pode-se
também corrigir os abusos na fixação dos valores das fianças. Valores absurdos
servem apenas para manter a prisão. A fiança aqui se transforma em fraude
libertária. Prisão usada prioritariamente para a contenção da população pobre
(ainda que muitos pratiquem crimes não violentos). Daí a presença nas prisões
de pouquíssimos ricos (que também praticam crimes escabrosos). O critério da
violência (e sua decorrente periculosidade) deveria ser o eixo de mandar ou não
mandar alguém para a prisão. Não importa se se trata de rico ou pobre: a
violência é um razoável critério de mandar alguém para a cadeia.
Evitar o abuso. O mundo
civilizado diz que a prisão de um ser humano deve ser um ato excepcional, não a
regra (nesse mesmo sentido é a letra da nossa Constituição); é por isso que ele
deve preencher uma série de requisitos legais, constitucionais e
internacionais. O que se pretende é, em pleno século XXI, evitar o abuso (ou
seja, não permitir que tiranetes e inquisidores torquemadas suprimam indevidamente a liberdade das
pessoas).
Ninguém
certamente é contra a prisão (instrumento necessário para o controle social e
preservação da integridade das outras pessoas), incluindo-se a cautelar (antes
da sentença condenatória final): o problema é o abuso, o excesso, a tirania, a
tortura ou o despotismo, que é herança da inquisição, impregnada na alma do
brasileiro (Darcy Ribeiro). O Brasil (com quase 600 mil presos; 300 para cada
100 mil pessoas) é o 4º país do mundo que mais prende (está atrás de EUA, China
e Rússia). Se considerada a prisão domiciliar, passamos para o 3º lugar (com
mais de 711 mil presos). De 1990 a 2013, nenhum país do mundo teve mais
crescimento da população carcerária que o Brasil (507% de aumento). Ou seja:
comparativamente aos outros países, prende-se muito no Brasil. Esse é mais um
motivo para se promover o estrito controle do ato excepcional da prisão em
flagrante.
Prendemos
muito e exorbitantemente mal (a prova disso é que a criminalidade não está
diminuindo). As prisões estão abarrotadas e a criminalidade aumenta a cada dia:
em 1980, tínhamos 11 assassinatos para 100 mil pessoas; em 2012, chegamos a 29
para 100 mil; das 50 cidades mais violentas do planeta, 19 são brasileiras.
Prendemos mal pelo seguinte: 51% dos presos não praticaram crimes violentos
(prendemos fundamentalmente marginalizados e muitos deles não são violentos;
prende-se inclusive por fatos insignificantes e deixa-se escapar milhares de
criminosos violentos).
Conforme
o InfoPen, do Ministério da Justiça, o Brasil contava (em 2013) com 41% de
presos provisórios. Justiça morosa (demora muito para julgar), que faz da
prisão cautelar instrumento de controle social. A falta de educação de
qualidade (no século XXI) é o equivalente moral da
escravidão dos séculos XVI-XIX (Eduardo Giannetti). A prisão massiva aloprada
(no século XXI) é o equivalente imoral da
inquisição (dos séculos XVI-XIX). A Justiça “torquemada” (Torquemada foi o
inquisidor geral da Espanha, no final do século XV) é o equivalente imoral no
século XXI do Santo Ofício.
O
déficit de vagas supera 230 mil. O desrespeito a todo tipo de legalidade é
abrumador. Dignidade humana não existe nesse local (que o digam os executivos
ricos que foram presos recentemente). No Amazonas, mais de 70% dos presos são
provisórios. Pior: pesquisa feita em parceria entre o Depen (Departamento
Penitenciário Nacional) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)
apontou que em 37,2% dos casos em que há aplicação de prisão provisória, os
réus não são condenados à prisão ao final do processo ou recebem penas menores
que seu período de encarceramento inicial. O abuso prisional está mais do que
demonstrado. Como combater o mau uso da prisão no Brasil?
Um dos
salutares caminhos é a “audiência de custódia” (apresentação do preso em 24h a
um juiz, para analisar a legalidade, necessidade e conveniência da prisão,
aplicando as medidas substitutivas do art. 319 do CPP, quando o caso). A
audiência de custódia representa a civilização (e a racionalidade). Quem a
combate (ou cria empecilhos para ela) são as almas impregnadas de
inquisitorialismo, de torquemadismo, de autoritarismo patriarcal. Constitui um
erro desprezar esses torquemadas remanescentes da Idade Média: eles
existem. Aliás, não devemos menosprezar nem sequer a Idade Média: ela inventou
uma série de coisas (como o manual da tortura, chamado Malleus
Maleficarum) que ainda nos atormentam (diz Umberto Eco). Quando os
trogloditas da sociedade anárquica imaginária de Montesquieu (Cartas Persas) procuraram um velho sábio
para comandar a cidade, dele ouviram o seguinte: “vocês estão, na verdade,
procurando se desfazer do fardo pesado do dever ético e moral; querem
substituí-lo pelas leis e pela Justiça, quando a ética e a moral já seria
suficiente”.
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