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Editor NAÇÃO JURÍDICA
29 de dezembro de 2014
Há quatro anos, Marcelo Guedes, 32, despacha diariamente no STF, o
Supremo Tribunal Federal. No gabinete do ministro Gilmar Mendes, atende
advogados e cataloga processos. Nas sessões, fica ao lado de Mendes e de
magistrados como Teori Zavascki e Ricardo Lewandowski.
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Marcelo, no entanto, é considerado um perigo para a sociedade. E pode ser preso a qualquer momento.
“Eu não consigo mais dormir, de medo”, diz. Ele foi condenado em 2007 a
oito anos de prisão por tráfico de drogas. Ficou preso por um ano na
Papuda, em Brasília. Saiu graças a um habeas corpus e passou a responder
ao processo em liberdade.
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Inscreveu-se no programa que oferece trabalho no STF a presidiários que
cumprem pena em regime aberto ou semiaberto. A ideia é dar uma segunda
chance àquele que se empenha em retomar a vida. E evitar que, sem opção,
ele volte ao crime. “O Marcelo é um funcionário aplicado e integrado ao
gabinete”, diz Gilmar Mendes.
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O jovem retomou os estudos. Tudo andava bem. Até que veio a bomba:
depois de oito anos de idas e vidas na Justiça, seu processo chegou ao
final. E ele teria que voltar à prisão para cumprir o que resta da pena.
Ou seja, embora trabalhe há anos na principal corte do país, Marcelo
precisa ir para a detenção para ser recuperado e “integrado
socialmente”, em tese o objetivo de qualquer pena.
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Marcelo se desesperou. Entrou com recursos, inclusive no STF. O ministro
Luís Barroso despachou, afastando a possibilidade de ele voltar ao
presídio de imediato. A situação segue indefinida.
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“Se eu voltar para a Papuda, vou largar mulher, mãe, pai, filhos,
tudo?”, diz ele à coluna às 6h30 de uma quarta-feira, enquanto se
prepara para ir de moto da chácara em que vive, nos arredores de
Brasília, até o STF.
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Marcelo mora na casa dos pais. A mãe, Thelma, é analista de sistemas. O
pai, Nilo Sérgio, 65, se aposentou por invalidez. Vive em cadeira de
rodas há 20 anos por causa de um derrame. O filho o ajuda na hora do
banho.
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Marcelo, a mulher, Cláudia, e os filhos Juliana, 12, e Henrique, 6,
ocupam dois quartos que ele construiu no subsolo do sobrado, na área que
era reservada à lavanderia. A casa de madeira do cão labrador, Pudim,
foi instalada na porta do puxadinho.
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Às 7h, ele chega ao STF. Acomoda-se numa mesa com telefone e computador,
na recepção do gabinete. E apresenta à coluna seus três companheiros de
trabalho.
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Wellington Almeida, 30, matou uma pessoa em 2011. Condenado a 11 anos,
já cumpriu um sexto e está no semiaberto. Foi selecionado para trabalhar
na recepção do gabinete de Mendes. Volta todos os dias para dormir no
CPP, o Centro de Progressão Penitenciária de Brasília.
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Valdir de Oliveira, 51, é ex-policial. Matou uma pessoa em 2002. Foi
condenado a 12 anos. Já está no aberto. Robson Willian, 33, foi
condenado por assalto. Trabalha no STF há um ano. Todos recebem R$
1.200,00 mensais.
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“O ministro Gilmar Mendes aceita traficante, homicida, assaltante. Ele
não tem preconceito”, diz Robson. Entusiasta de políticas de
ressocialização de presos, o magistrado nem sequer pergunta aos
coordenadores do programa, que selecionam os que vão para o seu
gabinete, o crime que eles cometeram.
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“Eu não poderia entrar nessa discussão sob pena de projetar preconceito e
de negar chance às pessoas, comprometendo o próprio intento do
programa”, diz o magistrado, que lançou a iniciativa em 2008, quando
presidia o STF. “Esse não é um programa apenas de direitos humanos, mas
também de segurança pública. A ressocialização evita a reincidência.”
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“O ministro nem sabe, mas o Valdir ficou preso com o pessoal do
mensalão”, diz Marcelo. “Conta para ela!”, incentiva. O ex-policial
ficava na ala especial em que estavam Delúbio Soares, Jacinto Lamas,
João Paulo Cunha e o bispo Rodrigues. “Esse pregava a Bíblia”, diz
Valdir. Lamas “era o que mais chorava”. E todos eram “gente boa demais”.
“Não é porque a pessoa erra que a personalidade dela muda”, afirma.
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Marcelo conta que tinha 19 anos e estudava administração no Iesb, o
Instituto de Educação Superior de Brasília, quando começou a “ir em
balada” e a consumir drogas. Experimentou ecstasy, “que é como ficar
bêbado sem passar mal”. E haxixe, “para ficar abestalhado”. Diz que
passou a comprar e distribuir aos amigos. Acabou preso na porta da casa
da avó. Sua mulher estava grávida. Sua mãe “envelheceu uns 20 anos”.
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Na Papuda, Marcelo aprendeu as regras da cadeia: não levantar a blusa e
mostrar o corpo. Não olhar para visitas de outros presos. “Lá, se você
não é visto, não é lembrado”, observa Wellington.
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“A opressão é muito grande”, acrescenta Robson, que está no semiaberto e
passa as noites na prisão. Até outros detentos, diz, “te secam para
você perder o trabalho”. “Nós somos a escória da sociedade, querendo ou
não. A maioria lá dentro quer estudar, expandir a mente. E não consegue.
Fica doido, sai pior do que entrou.”
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Robson diz que, no presídio, “tudo te empurra para trás”, por mais que a
pessoa tente melhorar. As dificuldades aparecem nas coisas mais
simples: “Você não imagina a minha luta para não chegar aqui com a roupa
amassada”.
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Ele dorme num lugar com 300 camas. “Mas jogam 650 pessoas lá dentro, um
monte dorme no chão.” Pendura a camisa, já usada, no beliche. Tenta
mantê-la lisa pois na prisão não há ferro de passar. “Toda hora alguém
esbarra e derruba a roupa.” Nas visitas quinzenais à mulher, Leidyanne,
deixa as camisas para lavar e volta à detenção com outras três, limpas.
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Robson era garçom e maître com 17 anos de trabalho. Foi condenado como
mandante de um assalto ao restaurante Capital Steak House. “O ser humano
fala ‘quero mais’. E termina na cadeia ou a sete palmos do chão. Joguei
tudo fora e me arrependo amargamente.” Quase se separou da mulher.
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“Quando você tá preso, tá preso. Perde tudo. Quando sai, a primeira
coisa que quer é reconquistar a confiança da família”, diz Valdir, que
evita falar do crime de homicídio que cometeu. “Ninguém mais acredita em
você. Eu fui criado na roça, fui engraxate, policial. Sempre trabalhei
do lado da Justiça. E agora até quem me conhece pensa que virei um
bandido na cadeia.”
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“É, depois de preso, você perde a autoestima. E a vergonha que eu tenho
de atender, aqui no gabinete, amigos que viraram advogados e descobrem
que eu fui presidiário?”, diz Marcelo.
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Valdir concorda: “Outro dia, eu estava no supermercado e encontrei um
amigo que falou bem alto para o outro: ‘Não te disse que ele tava
solto?’. Morri de vergonha”.
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“É difícil”, diz Robson. “É por isso que, quando aparece alguém querendo
ajudar, como aqui no STF, você até eleva a cabeça. Eu agora quero
estudar. Para bater no peito e dizer ‘eu posso!’.” Ele quer ser advogado
de defesa, “da área criminal”.
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Wellington sai do STF às 17 horas. À noite, na prisão, faz o curso
pré-vestibular. Quer ser médico, “pediatra ou clínico geral”. O
ex-policial Valdir “sonha” em ser reintegrado à carreira. E quer viver
num pequeno sítio que tem no interior de Goiás. Marcelo também quer ser
advogado, mas da área ambiental.
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No fim da conversa, eles chamam Carlos Eduardo Estevam para aparecer na
fotografia que ilustra essa reportagem. Ele foi condenado por tráfico de
drogas. Ainda preso, foi selecionado para trabalhar no STF, no programa
que hoje contempla Marcelo, Valdir, Robson e Wellington.
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Há dois anos, acabou de cumprir a pena. E hoje tem emprego fixo: foi
contratado para integrar a equipe de secretários do gabinete de Gilmar
Mendes.
Fonte: Folha de SP