O senhor concorda com as alterações promovidas por meio das MPs 664 e 665? Por quê?
Não
se trata de uma questão de opinião, no sentido de concordar, ou não. É
preciso entender o contexto histórico em que tais MPs se inserem, para
conseguir perceber melhor o que elas de fato representam.
Historicamente, o que representa a edição das recentes MPs 664 e 665 do atual governo Dilma?
Historicamente, as MPs podem ser vistas por dois ângulos.
Para
um observador menos atento, as MPs podem se apresentar como um
retrocesso à década de 90, quando o governo do PSDB, adotando,
explicitamente, a teoria neoliberal, buscava alavancar um projeto
econômico por meio da supressão de direitos trabalhistas,
considerando-os apenas sob a ótica dos custos, com desprezo ao aspecto
humano envolvido e mesmo ao fato de que tais direitos foram conquistados
após muita luta da classe trabalhadora. Com vistas a atingir seu
objetivo, valia-se o governo de Medidas Provisórias, exatamente para,
por intermédio da tática do “fato consumado, evitar o debate democrático
congressual sobre as medidas e dificultar a resistência dos
trabalhadores.
Para um observador mais atento, no entanto, as
recentes MPs adotadas pelo governo Dilma constituem a demonstração
explícita de que, no fundo, a política econômica do governo do PT, mesmo
trazendo um acréscimo de investimento nas ações assistenciais, não foi
diferente daquela que já vinha sendo implementada no período anterior,
sendo comprovação clara disso também o fato de que nenhuma das fórmulas
jurídicas de precarização das condições de trabalho criadas na década de
90, tais como a terceirização e o banco de horas, sofreu reversão na
era petista, não tendo havido, ainda, qualquer mudança de rumo em temas
extremante importantes para a classe trabalhadora como o da garantia de
emprego, ao menos nos termos da Convenção 158 da OIT, que serviria como
parâmetro para regulamentar o inciso I, do art. 7º. da CF. Em alguns
temas, aliás, o que se verificou foi um avanço da precarização, como nos
casos da terceirização no serviço público, especialmente no âmbito da
administração federal onde foi severamente acrescida, valendo lembrar
que nos últimos anos tem sido grande a luta contra a aprovação do PL
4.330, que foi abertamente apoiado pelo governo federal, PL este que
prevê a ampliação da terceirização, assim como também foi grande a luta
contra o projeto do negociado sobre o legislado (o ACE), também apoiado
pelo governo federal, o qual, aliás, na mesma linha propôs a criação do
SUT (Sistema Único do Trabalho), que inibe a atuação da fiscalização do
trabalho e incentiva a negociação coletiva mesmo “in pejus”, legitimando
a intermediação de mão-de-obra. Não se pode esquecer, ademais, da
violenta repressão que o governo promoveu nas recentes greves dos
servidores federais e como agiu repressivamente também com relação às
manifestações, tendo incentivado, a propósito, a adoção de uma Lei
Antiterrorismo (PL 499/13), que reproduz conceitos da Lei de Segurança
Nacional, típicos da época da ditadura, atentando, pois, contra a lógica
democrática, tudo para abafar as manifestações, as quais opunham à
realização da Copa no Brasil ou que serviam como instrução para
reivindicação de direitos sociais e melhorias nas condições de vida.
Aliado
a tudo isso, vê-se, agora, a apresentação daquela que, segundo o prof.
Marcus Orione, especialista na área da Seguridade Social, representa o
“pior de todo o conjunto de medidas já adotados em relação à previdência
social por qualquer governo no chamado Brasil democrático –
considerado, para fins jurídicos, o estado de direito que foi conformado
a partir da constituição de 1988 –, já que, além de tudo, é a que
atinge, em maiores proporções, a população mais pobre. Somente a
introdução do fator previdenciário, pelo governo Fernando Henrique
Cardoso (e mantido pelos governos Lula e Dilma), pode ser considerado
tão prejudicial aos trabalhadores quanto esta reforma produzida como um
dos derradeiros atos do fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff e com o
qual ela se credencia para iniciar a sua nova gestão. Isto dá a
dimensão histórica do que foi feito por este governo” [1].
O
governo justificou a medida de maior rigidez para o recebimento dos
benefícios com a necessidade de reduzir custos da Previdência e para
evitar fraudes. O que o senhor acha disso?
Acho um desrespeito à classe trabalhadora, ao menos por dois motivos.
Primeiro,
por uma questão principiológica, que é a mais importante de todas, vez
que fixa a diretriz do raciocínio e das atitudes. Ora, ao dizer que
pretende economizar R$18 bilhões mediante a supressão de benefícios dos
trabalhadores o governo adota o principio de que o interesse econômico
(que sequer é o interesse econômico do mercado, ao menos não
diretamente) deve prevalecer sobre o interesse social. Foram vários anos
de aprendizado, desde a implementação das políticas recessivas e de
arrocho salarial da equipe econômica de Roberto Campos, no período
iniciado em 1964, sobre os efeitos deletérios desse pensamento, ainda
mais quando acoplado à satisfação dos interesses de grupos econômicos
estrangeiros, gerando conseqüências graves também do ponto de vista da
formação educacional e da própria qualidade de mão-de-obra, prejudicando
a produção de riquezas e o desenvolvimento do país. O projeto gerou, na
década de 80, um grave ciclo inflacionário, que, novamente, prejudicou a
classe trabalhadora. Na década de 90, com a implementação da política
neoliberal, pensada a partir da realidade dos países do capitalismo
central, onde o Estado Social se efetivou concretamente, ao contrário do
que se verificou no Brasil, cujo implemento, que poderia advir com o
projeto de diretrizes e bases de João Goulart, foi impedido pelo golpe, a
solução pensada mais uma vez penalizou a classe trabalhadora.
Ou
seja, a classe trabalhadora foi punida nos 21 anos de ditadura
civil-militar, sofreu as conseqüências na década de 80, e pagou a conta a
partir da década de 90. E quando se está diante de uma iniciativa como
esta, da imposição de Medidas Provisórias que retiram direitos dos
trabalhadores sob o argumento de que isso é importante para alavancar a
economia, tem-se a prova de que a frase correta não é “os trabalhadores
pagaram a conta na década de 90” e sim, que “estão pagando a conta desde
a década de 90”, mantendo-se o princípio do “tudo pelo econômico” e não
do “tudo pelo social”.
Ainda que o governo tente utilizar
eufemismos para qualificar seu ato, dizendo tratar-se apenas de um
“ajuste” ou de um “um aperfeiçoamento das políticas sociais para
aumentar sua eficácia”, não é possível obstar a compreensão do
direcionamento principiológico que dita as MPs e o prejuízo concreto que
gera para os trabalhadores, como se demonstrará mais adiante, sendo
oportuno lembrar, para afastar qualquer tipo de retórica, que as maiores
investidas sobre os direitos trabalhistas foram feitas de 2003 em
diante: taxação dos inativos, alta programada e fator previdenciário
[2].
Segundo, pelo próprio fundamento econômico utilizado. Ora, a
redução do gasto em R$18 bilhões para uma economia como a do Brasil
cujo PIB [3] é R$ 4,84 trilhões (2013) é mesmo insignificante. Verdade
que nem assim houve superávit. Aliás, o que se anunciou na última
sexta-feira foi o maior défict nas contas do governo desde 1997,
coincidentemente de cerca de R$17,2 bilhões, tendo havido em dezembro de
2014, o pior resultado da história.
Partindo dessa coincidência,
fica até parecendo que o governo, sabendo que o déficit seria este quis
se antecipar a anunciar uma medida de restrição de gastos exatamente no
mesmo valor, para acalmar o mercado e os eventuais críticos.
E o fez, tirando de quem? Dos trabalhadores, é claro!
Mas, foram os trabalhadores os culpados do déficit?
O
PIB de 2014 ainda não foi anunciado. Sabe-se, por ora, apenas que a
arrecadação de impostos em 2013 atingiu a marca recorde de R$ 1,7
trilhão (2013), sendo que, de 1º. a 29 de janeiro de 2015, já tinham
sido arrecadados mais de R$ 181 bilhões.
Na contribuição para o
déficit o que há de se indagar é quanto se gastou para a realização da
Copa. Segundo o próprio governo, foram gastos R$ 25,6 bilhões, em obras
para o torneio, entre obras de estádios e infra-estrutura, sendo que
deste valor, 83,6% saíram dos cofres públicos.
Verdade que a
maior parte dos gastos foi feita para o transporte e aeroportos (60,1%),
mas a população continua pagando para a utilização desses serviços,
tendo havido, inclusive, no início do ano de 2015, aumento das tarifas.
Já outros R$ 7,09 bilhões foram utilizados para os estádios, que não
possuem qualquer interesse de ordem pública, estando, ademais, a maior
parte deles, à disposição da iniciativa privada, para exploração
econômica, cobrando pelos serviços, sem qualquer controle do Estado.
Claro
que o governo poderá dizer que no período de preparação para a Copa
foram gerados, segundo argumenta, R$ 3,6 milhões de empregos diretos
[4], mas quanto do valor efetivamente gasto ficou para os trabalhadores e
quanto restou para empreiteiras e demais entidades empreendedoras, que
foram “convidadas” para a festa? Dê-se registro, por oportuno, às
vultosas quantias oferecidas pelas empreiteiras para os principais
partidos políticos nas eleições de 2014 e lembre-se, também, que os
empregos ofertados na Copa foram em sua quase totalidade precários,
inseridos na lógica da terceirização, com baixos salários, práticas
exacerbadas de horas extras e um número recorde de mortes (até então)
[5].
E por falar em Copa, vale lembrar que a Fifa foi isenta, sem
que houvesse qualquer base constitucional, do pagamento de impostos em
montante que chegou a R$ 1,1 bilhão [6]. Essa entidade privada, aliás,
deixou o país com um lucro líquido de R$ 10 bilhões [7].
Fazendo
contas, impossível não lembrar os desvios na Petrobrás, cujo montante
ninguém ainda sabe concretamente quanto foi, mas já se tem por certo que
foram ao menos R$ 2,1 bilhões [8], havendo quem diga que as perdas
podem chegar a R$21 bilhões [9].
Tratando de números, o mais
importante para perceber a essência do modelo de sociedade em que
vivemos, é o dado referente ao percentual do PIB que fica com a classe
trabalhadora. No período de 1998 a 2002, houve uma queda relativa e
absoluta da massa salarial. “A participação dos salários no PIB recuou
de 45,37% para 35,14%, enquanto a parcela apropriada pelo capital pulou
de 32 para 42%. Só em 2003, a renda dos trabalhadores despencou 12,5%.”
[10]
Nesse aspecto, o governo petista teria a seu favor o número
de que no período de 2004 até 2009 a participação relativa da massa
salarial no PIB (Produto Interno Bruto) cresceu sucessivamente até
atingir 51,40% em 2009 [11].
Mas é importante lembrar que esse
acréscimo nos anos 2000, com a exceção do México, se deu também em
praticamente todos os países da América Latina [12], sendo que no
Brasil, considerada uma realidade até 2009, “os números mais altos
apresentam-se durante a virada dos anos 1950-60, com destaque para 1957,
em que a fatia salarial sobre o PIB alcançou 48,27%. Não gratuitamente,
um intervalo de tempo marcado por maior intervenção dos trabalhadores
na cena pública, que se esgotou no golpe de 1964” [13].
Assim, o
aumento verificado de 2004 a 2009 [14] representa um reflexo também da
extinção quase natural dos efeitos dos 21 anos da política econômica
recessiva do regime militar e do ataque frontal aos direitos
trabalhistas implementado na década de 90/início dos anos 2000, no auge
da política neoliberal em âmbito mundial.
De todo modo, mesmo
tendo havido acréscimo histórico da participação dos salários no PIB no
período de 2003 a 2009 e supondo que o acréscimo tenha continuado de
2010 a 2014, estamos falando de um percentual, em suposto cenário
extremamente “positivo” para os trabalhadores, que gira em torno, de
50%. Assim, se consideramos o PIB de 2013, R$ 4,84 trilhões, o valor de
impostos arrecadados no mesmo ano, R$ 1,7 trilhão e o percentual de 50%
destinado aos trabalhadores, teremos o resultado de um lucro liquido
para o capital na ordem de R$ 720 bilhões – mas é bem mais que isso se
considerarmos que do total da arrecadação de impostos já está a
contribuição previdenciária que também está integrada no cálculo da
massa salarial, sendo que seu valor anual gira em torno de R$ 300
milhões.
Teríamos, assim, um lucro líquido para o capital na
ordem de R$ 1 trilhão, ou seja, 1/5 do PIB, sendo certo, ainda, que o
valor destinado à classe trabalhadora, que se refere restritamente ao
salário, não fica de fato com os trabalhadores, pois são utilizados para
o consumo de produtos, cujo valor já vem acrescido da lógica de mercado
que favorece a uma nova acumulação.
A visualização é muito
simples: se uma pessoa recebe salário de uma montadora e utiliza este
salário para a compra de um carro, sendo que paga por esse produto um
valor bem superior ao do custo da produção, é evidente que a massa
salarial retorna ao capital em forma de lucro, ainda mais se
consideramos os incentivos ao endividamento da classe trabalhadora,
junto a instituições financeiras, pagando juros exorbitantes, para a
realização do consumo, sendo que esse valor adquirido por tais
instituições, quando ligadas ao governo, muitas vezes voltam ao capital
como incentivo à produção, com juros subsidiados. Essa conta é complexa,
mas no mínimo é impossível negar que 1/5 da riqueza produzida fica com o
capital (mas é bem mais, certamente).
Claro que muitos
empreendedores, vendo esses números, dirão que não tiveram lucro nenhum
ou que, bem ao contrário, tiveram prejuízo. Mas isso não é culpa do
custo do trabalho e sim de um modelo, estabelecido sobre as bases da
livre concorrência, que favorece aos grandes conglomerados econômicos,
inclusive nos negócios extorsivos que estes impõem aos pequenos e médios
empreendedores.
A prova inconteste da desigualdade no âmbito do
próprio capital está, novamente, no advento da Copa, que foi uma
espécie de modelo concentrado das relações capitalistas mundiais. Ora,
anunciou-se que a economia seria alavancada pelo evento em benefício de
todos, mas os que efetivamente lucraram foram a Fifa, suas parceiras, as
empreiteiras e alguns segmentos produtivos e de serviços. Muitos
segmentos importantes registraram fortes perdas com o evento – ou ao
menos não tiveram lucro adicional –, sobretudo em razão da diminuição
drástica da produção e mesmo do consumo [15].
Fato é que no nosso
caso brasileiro o capital abocanha ao menos R$ 1 trilhão por ano da
riqueza produzida. Pensemos em dois anos, em cinco anos, em dez anos,
que não é tanto tempo assim. Teremos, então, a bagatela de R$ 10
trilhões. Lembrando que esse valor é destinado na sua maior parte a
apenas algumas poucas empresas e que essas empresas, em geral, exploram o
trabalho em âmbito mundial, atingiremos um pouco da dimensão do seu
poder econômico e entenderemos como é possível haver uma quantidade de
dinheiro capaz de adquirir e derrubar um bairro inteiro de casas para
dar lugar a imensas construções, que também servem à nova reprodução, no
âmbito da especulação imobiliária.
Assim, trabalhamos para o
enriquecimento de alguns poucos conglomerados econômicos, estando em
pleno vigor, em âmbito mundial, a lógica da acumulação da riqueza
produzida, como destaca o recente estudo feito pelo economista francês,
Thomas Piketty, que preconiza, como solução, a taxação das grandes
fortunas, o que se trata, obviamente, de uma providência necessária e
urgente. Mas não se deve acreditar secamente no potencial corretivo da
medida, vez que não altera a lógica de modelo, o qual se reinventa
constantemente, ainda mais quando o poder político continua relacionado
ao grande capital. O mero aumento de impostos, sem estar relacionado
direta e obrigatoriamente ao retorno social, pode, em si, constituir um
problema, pois representa entregar uma parcela ainda maior da riqueza
produzida a um Estado que, no capitalismo, tende a ser corrupto e a
gerar investimentos para a preservação de lógicas espúrias de poder.
Em
concreto, o Estado tem favorecido à preservação desse modelo e ao
aprofundamento das desigualdades. Mesmo quando se aponta para a
diminuição da desigualdade o que se leva em consideração é apenas a
relação entre os que ganham mais e os que ganham menos, estando ambos no
âmbito da massa salarial [16]. Ou seja, não se refere à relação entre
trabalho e capital e nesta relação, considerada do ponto de vista da
totalidade, o que se tem verificado é, como dito, um acréscimo do
capital, acompanhando da diminuição do número de pessoas e de entidades
favorecidas [17].
Bom, mas do que estávamos falando mesmo?
Da economia de R$ 18 bilhões de reais...
Pois
é! Perceba que diante desse contexto econômico, chega mesmo a ser
ridículo que o governo veja a necessidade de impor à classe trabalhadora
um enorme sofrimento, para economizar míseros R$ 18 bilhões, que
representam cerca de 0,3% do PIB.
Lembre-se, com bastante
destaque, que somente em 2013, esse mesmo Estado deixou de arrecadar R$
77,8 bilhões, com reduções de tributos, sob o argumento de estimular a
economia [18]. Parte dessas reduções, R$13,2 bilhões, atingiu
diretamente o patrimônio dos trabalhadores, pois, segundo a Receita
Federal, advieram da desoneração da folha de pagamento. Essas
iniciativas, ademais, vêm sendo tomadas há vários anos [19] e
continuaram em 2014 [20].
E o que se vê no final de 2014 é esse
ataque aos trabalhadores e uma pressão enorme do setor econômico para
que se aprove uma lei que amplie as possibilidades de terceirização, o
que servirá, sem a menor dúvida, para aumentar a parcela do capital no
PIB, sobretudo porque a terceirização dificulta a mobilização sindical
dos trabalhadores e a sua luta por melhores condições de trabalho.
O
que está em vigor é uma espécie de agressão institucionalizada à classe
trabalhadora para favorecimento do grande capital, pois uma grande
parcela desse valor oficial que está sendo direcionado ao capital
pertence juridicamente falando aos trabalhadores.
Os números
apresentados partem do pressuposto fático concreto e não do ideal
juridicamente estabelecido. No mundo do ideal jurídico, todo empregado
deve ser registrado e receber seus direitos integralmente. Na realidade o
que se vê, no entanto, é um desrespeito aberto e reiterado dos direitos
trabalhistas e é evidente que o valor correspondente a esses direitos,
que pertencem à classe trabalhadora, é apropriado pelo capital – e não é
pouco.
Para se ter uma pequena ideia, em 2013, apenas no âmbito
do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região, que abrange o interior
de São Paulo, foram pagos aos reclamantes R$ 3,2 bilhões [21]. Mas
esses valores não foram “pagos” aos trabalhadores, foram devolvidos, vez
que haviam sido apropriados indevidamente pelo capital. E estamos
falando apenas de um Tribunal e não da integralidade da relação
capital-trabalho. A jurisdição da 15ª. Região abrange 21 milhões de
pessoas e o valor em questão teve em conta o universo de 275.273
reclamações trabalhistas, que foram resolvidas no mesmo ano.
A
maior quantidade de situações que envolvem a supressão de direitos
escapa à Justiça do Trabalho. Mesmo assim não é irrelevante a sua
atuação. Segundo dados fornecidos pela Justiça do Trabalho, em cinco
anos, de 2006 a2011, a Justiça do Trabalho, reconhecendo violações de
direitos, devolveu mais de R$56 bilhões aos reclamantes. “Só em 2011,
foram quase R$15 bilhões – ou 90% de todo o repasse feito pelo governo
federal no ano passado no Programa Bolsa Família, que atende a 13
milhões de famílias em todo o país”. No primeiro semestre de 2013 esse
número subiu para R$ 12,6 bilhões [22].
Em 2011, a Justiça do
Trabalho recebeu 2,1 milhões de novos processos. São reclamações de todo
tipo, que revelam diversas formas de violência: não pagamento de horas
extras, sem formulação de cartões de ponto; ausência de registro;
ausência de pagamento de verbas rescisórias, sobretudo em terceirizações
etc.
Ou seja, o valor devolvido aos trabalhadores pela Justiça
do Trabalho mesmo não sendo pouco abarca uma parcela ínfima da relação
capital-trabalho, devendo-se considerar, ainda, que muito desse valor
devolvido já é bastante inferior ao efetivamente devido se lembrarmos
que boa parte, cerca de 40%, resulta de conciliações, que têm sido
incentivadas por orientação do CNJ na linha da política do Banco
Mundial, nas quais o trabalhador, de forma geral, renuncia a parcela de
seus direitos para receber mais rapidamente.
Fácil supor,
portanto, que um valor bastante considerável, muitas vezes superior aos
R$ 18 bilhões que o governo quer cobrar dos trabalhadores para sanear as
suas contas, está sendo transferido indevidamente da classe
trabalhadora para o capital, com conivência do poder estatal, haja vista
a sua política de sucateamento dos serviços de auditoria fiscal do
Ministério do Trabalho e Emprego [23], favorecendo a supressão de
direitos, como se verifica nas práticas já costumeiras da pejotizaçao,
da terceirização, do trabalho ordinário em horas extras (sem remuneração
correspondente) etc.
Alie-se a tudo isso a completa falta de
vontade do Estado em arrecadar as contribuições previdenciárias que
seriam devidas sobre os valores pagos na Justiça, valendo lembrar que é
imperdoável a inércia do Estado a respeito, vez que está desconsiderando
sua obrigação frente a um patrimônio que não lhe pertence, sendo dele
proprietário a classe trabalhadora.
Para se ter uma ideia até
onde a coisa vai, em 2011 a Procuradoria Geral da União encaminhou à
Corregedoria do Tribunal onde atuo um Pedido de Providências, no qual
reclamava do fato de eu estar intimando a Procuradoria local do INSS
para se manifestar em processos cujos acordos não ultrapassavam a
R$10.000,00, apoiando-se nos termos de uma Portaria, a de n. 176, de
19/02/2010, do Ministério da Fazenda, segundo a qual o INSS não deve
verificar a regularidade dos recolhimentos previdenciários em processos
finalizados com acordos até o valor indicado. Vale esclarecer que pela
Portaria n. 435, de 08/09/11, do Ministério da Fazenda, o patamar da não
manifestação aumentou, passando para as situações em que o valor da
contribuição, ela própria, fosse igual ou inferior a R$10.000,00 e,
agora, desde dezembro de 2013, nos termos da Portaria n. 582, do
Ministério da Fazenda, esse valor foi majorado para R$20.000,00
Na
prática, sem a fiscalização do INSS, as partes declaram o valor que
querem recolher, quando querem (e normalmente não querem), o juiz não se
importa e o recolhimento não se faz ou se o faz em valor bem inferior
ao que seria devido se o direito fosse adimplido fora do processo, o que
gera prejuízo para a classe trabalhadora não apenas na perspectiva do
valor de seu patrimônio que está sendo aviltado, mas também no incentivo
ao desrespeito aos direitos trabalhistas por parte dos empregadores que
a prática representa, já que pagar espontânea e integralmente os
direitos trabalhistas acaba ficando mais caro do que deixar de pagá-los e
esperar a reclamação trabalhista.
Importa lembrar que uma
contribuição previdenciária de R$20.000,00 (tomando como parâmetro de
cálculo o percentual de 38,5%), devidas que são apenas sobre as parcelas
salariais, declaradas enquanto tais, e imaginando a hipótese mais
otimista para os trabalhadores de uma proporção de 50%, representa um
pagamento para o reclamante de R$104.000,00, o que não se dá, para ser
bastante conservador na projeção de números, em mais de 20% das
reclamações. Assim, se em um ano a Justiça paga ao trabalhador R$ 25
bilhões (pensando a partir do número informado referente ao primeiro
semestre de 2013, que, em 2014 pode ser sido ainda maior), o
recolhimento previdenciário total, em perspectiva ainda conservadora de
50% de natureza salarial, seria de R$ 4,81 bilhões, mas 80% desse valor,
ou seja, R$ 3,28 bilhões não é fiscalizado e certamente deixa de haver o
recolhimento do INSS na totalidade devida. Dados oficiais apontam que o
recolhimento de INSS na Justiça do Trabalho, em 2012, foi de R$ 2,4
bilhões [24]. Assim, pode-se vislumbrar uma perda de arrecadação de, no
mínimo, R$ 1 bilhão, valor este que, na verdade, é extraído do
patrimônio da classe trabalhadora e isto se considerarmos, repito, uma
base de cálculo de 50% dos valores pagos aos reclamantes, o que é
bastante reduzido, já que, de forma geral, no pagamento espontâneo, esse
percentual é de 70%.
Em cálculo grosseiro e bastante
conservador, portanto, pode-se dizer que os tais 18 bilhões que o
governo agora quer tirar dos trabalhadores, para que paguem uma conta
que não fizeram, foram gastos previamente com:
- isenção para a Fifa, R$ 1,1 bilhão;
- desvios na Petrobrás, R$ 2,1 bilhões;
- desoneração da folha de pagamento, R$13,2 bilhões;
- ausência de recolhimento nos processos trabalhistas, R$ 1 bilhão
- Total: R$17,4 bilhões.
Isso
sem falar no total das isenções tributárias, R$ 77,8 bilhões, no
incentivo às relações de trabalho precárias, notadamente a
terceirização, utilizada em larga escala no âmbito da administração
pública, que diminuem direitos trabalhistas e consequentemente as
contribuições previdenciárias, e no descaso com a fiscalização do
trabalho, favorecendo tanto ao desrespeito aos direitos trabalhistas
como à redução das contribuições sociais decorrentes, em montantes
incalculáveis, mas que, certamente, superam, em muitas vezes, os R$ 18
bilhões.
O interessante é que além de não realizar a fiscalização
das relações de trabalho, isentar o capital do pagamento de
contribuições sociais e de, efetivamente, deixar de arrecadar valores
declaradamente devidos, o governo ainda agride a classe trabalhadora
deixando, deliberadamente, de pagar seus benefícios previdenciários
[25].
Com efeito, somente em 2010 foram distribuídas às Varas da
Justiça Federal, na cidade de São Paulo, 16.924 ações, e 39.396, nos
Juizados Especiais do Estado. Nestes, nos Juizados Especiais, em matéria
previdenciária, foram distribuídas, em 2010, no Estado de São Paulo,
128.644 ações [26].
Em todo país, visualizando os dados de 2011 e
considerando os processos então em curso, o INSS apresentava-se como
réu em 5,8 milhões de ações, que tiveram origem, sobretudo, com a regra
da alta programada. Segundo estimativa do Sindicato Nacional dos
Aposen¬¬tados e Pensionistas da Força Sin¬¬dical (Sindinap) entre 50% e
70% desses processos previdenciários são motivados por problemas com os
auxílios, entre eles o auxílio-doença [27].
Esse desprezo do
Estado com o respeito às premissas básicas de um projeto irrisório que
seja de distribuição de renda e de implementação de um Estado Social
mínimo faz, inclusive, com que a gente se sinta um autêntico idiota
quando, em decorrência de um dever funcional, mas contrariando as
diretrizes da própria instituição, exige o completo recolhimento das
contribuições sociais e obrigações tributárias.
O que se tem, em
concreto, é um histórico de atuação do Estado em favor da acumulação da
riqueza por meio da exploração e do sofrimento da classe trabalhadora, o
que se vê possibilitado pela venda da ilusão do fornecimento de
prestações de assistência social e de uma suposta efetividade do Estado
do bem-estar social, valendo destacar, ainda, que os tais “R$ 18 bilhões
que serão retirados dos trabalhadores correspondem a 70% do gasto com o
Bolsa Família em 2014” [28].
Diante desse acúmulo de desrespeito
aos direitos dos trabalhadores fica ainda mais agressivo vir a público
propor salvar a economia por meio da imposição de novo sacrifício aos
trabalhadores, mascarando o ato com a retórica de tratar-se de um ajuste
ou de “um aperfeiçoamento das políticas sociais para aumentar sua
eficácia”.
Mas, do ponto de vista concreto, como as MPs prejudicam os trabalhadores?
O
prejuízo concreto aos trabalhadores está demonstrado nos dados acima,
que revelam a séria agressão aos direitos dos trabalhadores que as
Medidas representam. De um ponto de vista imediato as MPs prejudicam os
trabalhadores porque criam obstáculos ao recebimento de benefícios
previdenciários e o governo bem sabe dos problemas que envolvem sua
atitude, tanto que só editou as Medidas na “calada do ano”, no dia 30 de
dezembro de 2014. Como diz Luís Carlos Moro, “é impressionante como se
legisla nos estertores de dezembro de cada ano” [29].
As duas
MPs, ns. 664 e 665, fixam uma série de alterações nas regras para o
acesso aos benefícios: seguro-desemprego, abono salarial, seguro-defeso,
pensão por morte, auxílio-doença e auxílio-reclusão.
Conforme
resumo muito bem feito por Sandro Sarda e José Antônio Ribeiro de
Oliveira Silva, as precarizações mais significativas previstas nas MPs
664/14 e 665/14 são:
“I – exigência de 24 meses de casamento ou de união estável para recebimento de pensão por morte;
II – redução do valor da pensão por morte de 100% para 50%, acrescido de 10% por dependente;
III – redução do tempo de duração do benefício de pensão por morte, de acordo com a expectativa de vida do cônjuge;
IV – carência de 24 meses para pensões por morte;
V – alteração da base de cálculo do auxílio-doença, observando-se a média das 12 últimas contribuições;
VI
– ampliação de 15 para 30 dias do período pago pela empresa, na
hipótese de incapacidade para o trabalho, pois apenas após o período de
trinta dias é que o trabalhador deverá ser encaminhado ao INSS para
realização de perícia;
VII – possibilidade de realização de perícias médicas por empresas, mediante acordo de cooperação técnica;
VIII
– alteração das carências para requerimento de seguro-desemprego, de 6
meses para 18 meses na 1ª solicitação, de 6 para 12 meses na 2ª,
mantendo-se o período de 6 meses apenas a partir da 3ª solicitação.”
No
que se refere ao seguro-desemprego, por exemplo, o novo requisito vai
fazer com quem dos atuais 3,2 milhões de trabalhadores dispensados sem
justa causa que não têm direito ao benefício, vez que seus contratos não
chegam a seis meses, atinja-se ao número trágico de 8 milhões de
trabalhadores, o que equivale a 64,4% dos trabalhadores dispensados, sem
justa causa. Ora, se lembrarmos que há uma projeção de crise econômica
para o presente ano, o governo ao promover tal medida, não pensa apenas
em economizar, mas também em não sofrer as conseqüências financeiras do
desemprego, que resta, então, admitido como saída natural para a crise. O
que o governo está dizendo é que os trabalhadores, que já pagaram
historicamente com a supressão de seus direitos e que tiveram a sua
força de trabalho utilizada a serviço da produção de riquezas para o
capital, serão, agora, simplesmente, jogados fora e conduzidos à sua
própria sorte, fazendo-o, ainda, mediante forte inversão de valores e
por meio de um rebaixamento moral dos trabalhadores, argumentando, de
forma dissimulada, que a Medida tem o objetivo de eliminar as fraudes,
como se a fraude não tivesse que ser identificada especificamente e
punida. Aliás, seria bem mais certo apontar a arma da moralidade para
outros lados...
Do ponto de vista do projeto político
constitucional, no entanto, o desenvolvimento econômico deve seguir os
ditames da justiça social (art. 170), incluindo a busca do pleno
emprego, tendo por fundamento a preservação da dignidade humana, estando
o empregado, portanto, protegido contra a dispensa arbitrária (art.
7º., I) e a classe trabalhadora como um todo agraciada com o princípio
da melhoria da condição social.
Assim, qualquer argumento
econômico que se pudesse ter (e não se o tem, como visto) não
justificaria negar vigência ao projeto constitucional que exige uma
atuação de todas as instituições para obstar o incremento da lógica
fácil da imposição de maiores sacrifícios aos trabalhadores para a
satisfação do interesse econômico de empresas determinadas. O projeto
constitucional lançou um desafio aos administradores e ao poder
econômico: o de demonstrar a viabilidade do modelo econômico a partir da
sua capacidade de produzir justiça social.
Assim, toda vez que
se chega à conclusão de que não é possível preservar direitos sociais o
que se tem não é a demonstração do elevado custo desses direitos e sim a
comprovação de que o modelo é inviável e que o projeto do Estado Social
não passa de uma solerte mentira, posta apenas para criar ilusões e
impedir a dinâmica progressista ou mesmo revolucionária dos conflitos,
não abrindo mão, por certo, para tanto, da força do Estado Policial.
Quais são os pontos positivos e negativos aos empregados e aos empregadores?
Não
há ponto positivo algum pelo aspecto básico de que as MPs constituem
uma afronta à Constituição Federal, consubstanciando um atentado ao
Estado Democrático de Direito. Sendo assim, ainda que economicamente
tivessem alguma serventia não poderiam ser acolhidas pela ordem
jurídica.
Nem mesmo para os empregadores, pensados na perspectiva
daqueles que se interessam pelo mercado interno, as Medidas têm algum
ponto positivo, pois não interessa ao processo produtivo eliminar a
proteção dos trabalhadores contra as contingências sociais, pela simples
razão, econômica, de que isso gera as inseguranças das quais se origina
o adoecimento, que tanto mal faz ao processo produtivo.
Veja que
as MPs oneram as empresas, aumentando de 15 para 30 dias o tempo em que
o empregado afastado do trabalho, por doença ou acidente do trabalho,
fica sob responsabilidade econômica do empregador, dificultando tanto a
vida do trabalhador quanto da empresa.
Os novos critérios estabelecidos encontram óbice sob o ponto de vista jurídico?
Vários
são os óbices jurídicos das MPs, sobretudo pelo aspecto básico de que
ferem os princípios da prevalência do social sobre o econômico e da
progressão dos direitos sociais. E ainda que algum argumento econômico
pudesse ser utilizado para justificar uma excepcionalidade à norma (e
princípios são normas), não se teria base fática concreta para esse
argumento, conforme vastamente demonstrado acima.
Essa não é, de
todo modo, uma questão meramente econômica, pois segundo números
extraídos apenas das ações que tramitaram na Justiça do Trabalho em um
único ano, o de 2011, 2,8 mil trabalhadores morreram em decorrência de
acidentes do trabalho, que estão relacionados a uma maior precariedade
nas relações de trabalho.
Cumpre destacar que em infeliz
coincidência com o resultado da Copa do mundo, a precariedade das
relações de trabalho conduziu o Brasil a outro quarto lugar,
especificamente no que tange ao número de acidentes fatais no trabalho
[30].
Interessante que os trabalhadores mais suscetíveis a
acidentes são os motoristas, os agentes de segurança, os trabalhadores
da construção civil e os trabalhadores rurais e as reformas jurídicas
que estão sendo defendidas no Congresso Nacional direcionam-se,
exatamente, a reforçar a precariedade nesses setores. Lembre-se que
tramita no Congresso Nacional um projeto de lei para revogar a lei que
limitou a jornada de trabalho dos motoristas.
A terceirização é
utilizada em larga escala nos serviços de segurança, na construção civil
e no transporte e “segundo dados do Dieese, o risco de um empregado
terceirizado morrer em decorrência de um acidente de trabalho é cinco
vezes maior do que nos demais segmentos produtivos” [31].
Destaque-se,
ainda, que o setor econômico requereu, recentemente, a suspensão, que
já foi autorizada pelo Ministério do Trabalho, da aplicação da NR12, que
regulamenta a forma das atividades produtivas com máquinas, mas em
2013, “apenas 11 tipos de máquinas e equipamentos (como serras, prensas,
tornos, frezadoras, laminadoras, calandras, máquina de embalar)
provocaram 55.118 infortúnios, o que representa mais de 10% do total de
546.014 acidentes típicos comunicados pelas empresas no Brasil” [32].
Fato
inquestionável é que os trabalhadores estão morrendo em decorrência de
insegurança, no trabalho, no direito e na economia, e a postura do
governo em vez de ser uma atitude responsável, buscando eliminar as
causas desse mal, proibindo a terceirização, afastando o banco de horas,
eliminando as horas extras, punindo as fraudes trabalhistas,
erradicando o trabalho infantil, promovendo a abolição do trabalho em
condições análogas a de escravo, exigindo a adoção de medidas efetivas
de proteção do trabalhador no meio ambiente de trabalho e garantindo a
estabilidade no emprego, o exercício do direito de greve e a
sindicalização, que certamente gerariam o efeito da redução de mortes,
foi a de simplesmente diminuir os custos que da morte do trabalhador
decorrem. Como dito por Luís Carlos Moro, “Morreram trabalhadores demais
nos últimos anos. Entre 2006, quando se gastava cerca de 39 bilhões de
reais por ano com pensões, e 2013, houve um salto para 87 bilhões. Muito
dinheiro para os mortos. Mais urgente que reduzir as mortes, a equipe
econômica entende que é preciso diminuir o valor com as despesas dos
mortos.” [33]
As alterações podem causar impacto no Judiciário? Caso sim, como?
É
evidente que essas alterações, por ferirem preceitos jurídicos básicos,
causarão impacto no Judiciário, no que se refere ao número de demandas.
Mas esse parece ser um efeito calculado, assumido enquanto tal, já que o
Estado brasileiro (assim como pensa boa parte do jurisdicionado
empresarial nacional) não tem medo dos efeitos das decisões judiciais,
que costumam ser dóceis com aqueles que agridem direitos sociais, mesmo
que de forma reiterada e deliberada. Com efeito, conforme noticia o CNJ
[34], os setores públicos da esfera federal e dos estados foram
responsáveis por 39,26% dos processos que chegaram à Justiça de primeiro
grau e aos Juizados Especiais entre janeiro e outubro do ano passado. O
Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) ocupa o primeiro lugar no
ranking das organizações públicas e privadas com mais processos no
Judiciário Trabalhista, Federal e dos estados. O órgão respondeu por
4,38% das ações que ingressaram nesses três ramos da Justiça nos 10
primeiros meses do ano passado, sendo que no que se refere,
especificamente, à Justiça Federal, esse percentual é de 34% (de ações
no primeiro grau) e 79% (nos juizados especiais).
Dia desses
recebemos, na Faculdade de Direito da USP, um professor alemão, Wolfgang
Däubler, e quando, após sua palestra, lhe indaguei como eles resolviam
os problemas do precatório, ele não entendeu a pergunta e tive que ser
auxiliado, na formulação da questão, pelas demais pessoas que estavam
presentes ao evento. Quando ele entendeu a pergunta ficou horrorizado e
respondeu com uma indagação exclamativa: “Mas, como assim: o Estado não
cumpre o direito que ele próprio cria? Na Alemanha isso não acontece!”
Ficamos todos quietos, para não aprofundar a vergonha, vez que se
levássemos a questão adiante teríamos que lhe dizer que por aqui não só o
Estado assim age como os homens do direito acham normal que isso ocorra
e mesmo as estruturas jurídicas, da forma como são aplicadas, servem
como uma espécie de incentivo institucionalizado para que o Estado não
cumpra o direito em detrimento do cidadão, conferindo-lhe
“prerrogativas” processuais: juros reduzidos, prazos em dobro, isenção
de custas e o próprio precatório, que, em verdade, serve de freio à
obrigação do pagamento.
De fato, é inconcebível que os
administradores da coisa pública não tenham compromisso com os direitos
sociais e transformem o Estado em um dos maiores, senão o maior,
litigante da realidade jurídica nacional.
Ocorre que nossos
governantes pensam mais nas estratégias partidárias, nos dividendos
eleitorais e nos agrados aos financiadores de campanha, como forma de se
manterem no poder, do que, propriamente, na implementação de algum
projeto de país.
As Medidas Provisórias ns. 664 e 665, editadas
em 30 de dezembro, são prova contundente da preocupação exclusiva em
apresentar números positivos de superávit, para sustentação política,
mesmo que isso implicasse em ofensas à Constituição e gerasse danos à
classe trabalhadora e, por tabela, ao Judiciário.
Um modo
eficiente de alterar essa realidade, consistente na adoção de uma
postura irresponsável, que preconiza a institucionalização do calote,
tomando como vítima os titulares de direitos sociais e contando com a
impunidade e a morosidade judicial, é o Judiciário se utilizar das
figuras jurídicas do dano social e do assédio processual, punindo de
forma exemplar e como mecanismo de desestímulo à prática ilícita, o
agressor contumaz e convicto da ordem jurídica, o que se justifica ainda
mais quando o agente é o próprio Estado.
Alguma consideração final?
É
preciso reconhecer que existe um estágio de violência
institucionalizada, representada pelo desrespeito aos direitos sociais,
do qual participa o próprio Estado como agente, tendo como vítima
principalmente o cidadão mais pobre, que, neste sentido, é tratado como
um inimigo, o que é inconcebível, ainda mais dentro da lógica
jurídico-política de um pretenso Estado Social.
Vale reparar que
de forma totalmente incoerente essa preocupação econômica, que justifica
as supressões de direitos, não é vista, com a mesma intensidade, no que
se refere às obrigações do recolhimento das contribuições sociais, o
que representa mais uma violência aos titulares de direitos sociais,
pois a efetividade desses direitos, notadamente os previdenciários,
depende do custeio.
Qualquer pedido de sacrifício dos
trabalhadores para salvar o modelo econômico só se justificaria dentro
da lógica de um pacto, apoiado em um plano construído a partir de
números reais, com projeções e fixação de prazos, e do qual
participassem todos os segmentos da sociedade, impondo-se o maior
sacrifício daqueles que, nos últimos anos, foram os mais beneficiados do
modelo, quais sejam, os grandes conglomerados econômicos, os bancos, as
empreiteiras, as empresas em geral, os políticos e os agentes de
Estado, e somente depois, se necessário fosse e gerasse efeitos
concretos, chegar aos trabalhadores e mesmo assim de forma escalonada,
exigindo-se mais do que mais ganham. Mas esse é apenas um argumento
retórico, vez que na lógica do projeto já estabelecido no estágio atual
da racionalidade o que se exige da inteligência humana é que impulsione a
humanidade para frente e não para trás.
Ora, a redução de
custos na ordem de 18 bilhões não salva a economia nacional e, portanto,
trata-se da imposição de um sacrifício a uma quantidade enorme de
pessoas sem qualquer retorno financeiro concreto para a economia como um
todo. Além disso, essa forma de encarar os direitos dos trabalhadores é
típica da teoria neoliberal, que mascara os problemas que, na essência,
são do modelo de produção capitalista. Tentar resolver os entraves do
modelo econômico por meio da imposição de sacrifícios aos trabalhadores
torna os trabalhadores culpados pelos problemas de um sistema do qual,
na verdade, são vítimas, deixando de lado os reais entraves do modelo.
Durante
toda a década de 90 travou-se uma luta muito intensa, do ponto de vista
teórico, para superar essa racionalidade econômica, sobressaindo,
inclusive, a noção de que ou bem esse modelo de sociedade é capaz de
assegurar aos trabalhadores condições dignas de sobrevivência,
estabelecendo as possibilidades concretas de se caminhar em direção da
igualdade social, ou deve sucumbir, cedendo a outro modelo de sociedade.
Diz-se
que é preciso alavancar a economia, mas é totalmente ilógico buscar
fazê-lo por meio do sacrifico exatamente daqueles que são os
responsáveis pela produção das riquezas, os trabalhadores. O sucesso
econômico, pensado na viabilidade do modelo, está, portanto, atrelado ao
desenvolvimento social.
Mas talvez no capitalismo uma justiça
social seja mesmo um projeto irrealizável, afinal é o próprio poder
econômico que insiste em explicitar isso, reivindicando insistente e
reiteradamente redução salarial, desemprego, contratos precários de
trabalho, eliminação de sua responsabilidade social e humana perante o
trabalhador com a implementação da terceirização e a exploração sem
limites dos trabalhadores, afastando controles de jornada e eliminando
custos da proteção do meio ambiente de trabalho, tudo como forma
necessária de preservar o interesse das empresas, que se dizem
pressionadas pela concorrência internacional.