O culto à ignorância Valorizar a educação formal e a cultura clássica virou
preconceito elitista, um mau sinal para o futuro
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4 dez 2020, 09:01 O título chama atenção numa capa de revista: “O maior pensador
do Brasil de hoje”. Dada a escassez de mentes profícuas no país, a curiosidade
se justifica. Para surpresa do leitor, porém, o texto não se refere a nenhum
filósofo, escritor ou acadêmico com sólido currículo de estudos. Mas a um dos
rappers-celebridades do momento, ali qualificado como brilhante: Leandro Roque
de Oliveira, mais conhecido como Emicida. Um jovem artista inteligente e bem
articulado, mas que, por mais talentos que se lhe queira atribuir como músico,
não pode definitivamente ser considerado o maior pensador brasileiro. Ou pode?
Depende, é claro, da métrica que se empregue para definir quem merece ser
destacado como paradigma, e esses critérios andam cada vez mais relativos por
aqui. Considere-se, entre outros sinais, a mediocridade dos debates políticos
durante a última campanha eleitoral. A superficialidade com que pautas
intrincadas das agendas de governo foram abordadas lembra a célebre metáfora do
dramaturgo Nelson Rodrigues sobre uma formiguinha atravessando uma poça com água
pelas canelas. Outro exemplo desse relaxamento de padrões é a reverência com que
vêm sendo tratadas, nos últimos tempos, as opiniões de atrizes de segunda linha,
youtubers, funkeiras, celebridades e subcelebridades, sobre praticamente todos
os assuntos de interesse público, por mais complexos que se afigurem — da
questão climática à mobilidade urbana, passando pela gestão da pandemia e
reforma tributária. É claro que todos têm o direito de expressar seus pontos de
vista, crença central das democracias liberais. O que escapa à lógica é por que
razão a chancela política de artistas e influenciadores digitais deveria merecer
tamanha consideração na escolha de governantes e na definição de políticas
públicas — acima, e em detrimento, da dos especialistas que se dedicam a
estudá-las profissionalmente, anos a fio. Qual a credencial de ídolos midiáticos
como Felipe Neto, Anitta, Bruno Gagliasso e Camila Pitanga, ou mesmo expoentes
musicais como Chico Buarque e Caetano Veloso, para pontificar de forma
categórica sobre quase tudo? Ou tentar influenciar o voto dos paulistanos, como
se viu na campanha de Guilherme Boulos, mesmo sem morar em São Paulo? Esse mito
do artista onisciente, reconheça-se, não é novidade nem exclusividade
brasileira. Haja vista a desenvoltura com a qual roqueiros globais se metem
constantemente nas discussões sobre a Amazônia e o destaque dado às estrelas de
Hollywood nas eleições norte-americanas. Porém, a intensidade que o fenômeno vem
ganhando por aqui, além de empobrecer o debate público, parece indicar algo mais
grave sobre nosso atual estágio civilizatório: o pouco valor que atribuímos,
como sociedade e Estado, à educação e ao conhecimento. É fato que nunca primamos
pelo apreço à cultura, como atestam nossos vexaminosos índices de educação e
leitura. O país que mantém 11 milhões de pessoas analfabetas em pleno século 21,
sem contar os analfabetos funcionais, e onde mais da metade das pessoas acima de
25 anos não completa o ensino médio, praticamente não lê. Enquanto a população
cresce, o número de leitores encolhe — foram 4 milhões a menos entre 2015 e 2019
—, assim como a quantidade de municípios que possuem bibliotecas públicas, que
caiu 10% no mesmo período. Até pouco tempo atrás, entretanto, ainda cultivávamos
como referência pensadores de escol — luminares do passado remoto ou recente
como um Rui Barbosa, um Joaquim Nabuco, um Gilberto Freire, um Sergio Buarque de
Holanda ou um Raymundo Faoro, por exemplo. Agora, contudo, parece que nos
acostumamos à sina de país de iletrados e baixamos de vez a régua. Não apenas
incorporamos a ignorância como normalidade, mas passamos a celebrá-la. Veja-se o
sucesso que fez a funkeira Anitta, estrela do clipe “Vai Malandra”, ao estrear
de forma estrepitosa no terreno da política, meses atrás. Criticada durante a
campanha eleitoral de 2018 por não aderir ao movimento #EleNão, ela resolveu
interromper seu rebolado milionário para inteirar-se do assunto. Passou a tomar
aulas do beabá político em vídeo, transformando seu constrangedor
desconhecimento em espetáculo pop para 50 milhões de seguidores. Em poucos dias,
já estava credenciada para cobrar do Congresso a rejeição de um complicado
projeto de lei sobre regularização fundiária e ser cogitada — acredite-se — para
uma carreira na política. Algo está, também, fora do lugar quando uma eminência
da Suprema Corte, como o juiz Luís Roberto Barroso, deixa de lado seus afazeres
constitucionais para correr atrás de likes nas redes sociais, discutindo
questões da República em live com o youtuber imitador de foca Felipe Neto, que
fez fortuna dando dicas de sexo para adolescentes. Diante de um exemplo desses
vindo do topo, o que esperar dos marginalizados que crescem sem escola na base
da pirâmide social? Experimente perguntar ao Google quais são os grandes
pensadores brasileiros. O algoritmo trará em destaque, à frente mesmo dos nossos
três filósofos mais em voga — Mario Sergio Cortella, Leandro Karnal e Clóvis de
Barros Filho —, a ativista negra, feminista e filósofa Djamila Ribeiro, que
destronou há pouco tempo a folclórica Marilena Chauí como musa intelectual da
esquerda. Ela vem seguida de perto na lista por outra militante do ramo, a
escatológica Marcia Tiburi, ex-candidata do PT ao governo do Rio de Janeiro —
aquela que teoriza sobre o “caráter anal” da política e cuja profundidade de
pensamento pode ser conferida no título de seu livro mais recente, Como Derrotar
o Turbo Tecno Macho Nazifascismo. Somos todos, de certa forma, ignorantes, no
sentido estrito do termo Se a indigência atual do debate público está mais do
que evidente para quem quiser ver, abordar o assunto mostra-se mais arriscado.
Para a autodenominada intelectualidade progressista, questionar a qualificação
dessas novas sumidades do pensamento nacional não passa de preconceito elitista.
Uma atitude típica de reacionários, inconformados com a suposta ascensão dos
desfavorecidos promovida pelos governos petistas. É como se, já que não
conseguimos erradicar a ignorância, tivéssemos optado, por algum mecanismo
perverso e subliminar, por glamourizar a incultura. Passamos a menosprezar a
importância da educação formal e da cultura clássica, em favor da educação dita
popular — um subproduto da celebrada Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, que
entende a educação como instrumento da luta de classes e permanece hegemônica,
década após década, nos meios acadêmicos, apesar dos seus péssimos resultados
práticos. Nesse sentido, a apologia da cultura das favelas e periferias por
parte dos bem-pensantes pretende representar, ao que tudo indica, uma forma
travestida de inclusão social — além, é claro, de uma tentativa de expiar a
culpa pelos próprios privilégios sem precisar abrir mão deles. A banalização de
palavrões de baixo calão entre crianças e jovens criados fora da escola e
educados nas ruas pelo rap, por exemplo, não causa repúdio, mas complacência. Em
teses universitárias, é caracterizada como uma aceitável “variante linguística”
das classes oprimidas. A funkeira Anitta tomando aulas com a advogada e
professora Gabriela Prioli: uma nova “pensadora” para o país Contorcionismos
desse tipo vêm se tornando mais flagrantes desde a eleição do ex-presidente
Lula. Antes de sua longa ficha de crimes vir a público, uma das polêmicas que o
cercavam girava em torno, como se recorda, de sua linguagem tosca, com o recurso
ocasional a distorções como “menas” ou “seje”, e o hábito de vangloriar-se por
desprezar a leitura. Na época, esse estilo popularesco era louvado como
expressão benfazeja da chegada do povo ao poder. Quem ousasse discordar era
acusado não apenas de intolerância ou reacionarismo, mas de uma forma
recém-categorizada de discriminação — a linguística, apontada como tão funesta e
inadmissível quanto a racial e a de gênero. Um artigo da jornalista Dora Kramer,
no qual ela sugeriu tratar-se de mera tática demagógica, visto que Lula já
demonstrara há tempos o domínio da língua, causou clamor e virou objeto de
várias teses, uma delas a cargo de um certo Laboratório de Estudos de
Intolerância da Universidade de São Paulo, a USP. Pode parecer um despropósito.
Mas essa suposta forma de discriminação já ganhou até nome, glotofobia, e há
movimentos para criminalizá-la legalmente — embora pareça difícil entender como
esse tipo de transgressão seria tipificado na prática. Será que um professor que
corrija os erros de português de um aluno poderia ser incriminado? O que essa
linha de pensamento representa não é apenas extravagante. No limite, ela
questiona a própria educação formal, baseada no ensino da norma culta da língua,
considerada por linguistas militantes como um instrumento ideológico de
dominação. “Toda e qualquer maneira de falar vale ouro na luta contra o
fascismo”, argumenta por exemplo o filólogo Marcos Bagno, professor da
Universidade de Brasília, ao defender o vale-tudo no uso da língua. “A norma
culta que se lasque, que se dane, que se esboroe! Saber falar o ‘bom português’
nunca permitiu a ascensão social de ninguém, ao contrário do que prega a
propaganda enganosa da pequena, pequeníssima burguesia”. O paradoxo é evidente.
Adotar um tipo de educação para os filhos dos pobres diferente do das demais
crianças não seria, afinal, a verdadeira e mais efetiva forma de discriminação?
Como se espera que eles possam competir com os egressos das escolas de elite sem
a competência básica de se comunicar, pressuposto para a aquisição de todas as
outras? O jovem historiador marxista pernambucano Jones Manoel, que cresceu nas
favelas do Recife, parece não comprar esse embuste e começa a abrir uma cunha na
narrativa que o sustenta. “Certas perspectivas de educação popular são
anticientíficas”, rebate, com conhecimento de causa, numa das aulas de marxismo
de seu popular canal no YouTube. “São uma ideologia irracionalista, uma forma de
entender a educação que trata o povo como burro, como imbecil.” Militante do
PCdoB que ganhou fama como novo guru político de Caetano Veloso, Jones se assume
como um revolucionário radical. Quando trata de educação, no entanto, pauta-se
pela racionalidade e bom senso. “A verdadeira educação popular”, defende, “tem
que socializar ao máximo o conhecimento, o patrimônio cultural da humanidade.” O
Brasil tem 11 milhões de analfabetos O baixo nível cultural no país, como se vê,
tem raízes profundas e bem sedimentadas. Não pode ser atribuído às mídias
sociais, ultimamente responsabilizadas por todas as mazelas. Nem à nossa tardia
abolição da escravatura, como pretendem líderes do movimento antirracista. Ele é
fruto de uma mentalidade distorcida, que levou a uma série de escolhas
equivocadas, entre as quais a ideologização do ensino. Só isso explica o descaso
histórico do poder público e da sociedade em relação à educação, denunciado dias
atrás, de forma arrasadora, pelo ex-ministro da Educação Cristovam Buarque,
criador do Bolsa Escola. Em um artigo antológico publicado por O Estado de S.
Paulo, o ex-petista que ficou apenas um ano no cargo e foi demitido por Lula
pelo telefone sugere que ele próprio, como todos os governantes, desde a
Proclamação da República, devem desculpas ao país pelo atual estado de
descalabro da educação. Defensor da federalização do ensino fundamental, sob o
argumento de que essa etapa decisiva não deveria ficar à mercê dos orçamentos e
da gestão das prefeituras, Buarque mostra que o investimento na universalização
do ensino de qualidade — R$ 15 mil anuais por aluno — é relativamente pequeno.
Sobretudo quando se considera a alternativa: a perpetuação da miséria e da
ignorância. “Não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para
todos.” Somos todos, de certa forma, ignorantes, no sentido estrito do termo, o
da insciência, e do enunciado, atribuído a Sócrates, “só sei que nada sei”.
Enxergamos apenas um horizonte estreito da realidade, e ainda assim com
distorções. Desde que saímos das cavernas, contudo, cada nova geração ilumina um
pouco mais o caminho, amplia o entendimento do mundo, galga novos patamares de
conhecimento. Ao desprezar esse imenso legado da civilização, o Brasil não
desperdiça apenas vidas, cérebros e talentos. Condena-se a fenecer à margem da
História. Leia também a reportagem de capa desta edição, “A formação que
deforma” ________________________________________ Selma Santa Cruz foi editora e
correspondente internacional do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Veja,
na França e nos Estados Unidos, antes de se dedicar à comunicação corporativa
como sócia-diretora da TV1, grupo de agências especializadas em marketing
digital, conteúdo, live marketing e relações públicas. É mestre em comunicação
pela USP e estudante permanente da História.