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terça-feira, 18 de maio de 2021

É obrigatório conter a assinatura de duas testemunhas no contrato?

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Publicado por Daniele de Freitas

Tenho certeza que em algum momento você já fez essa pergunta.

Na imensa maioria dos contratos vemos ao final a assinatura das partes contratantes e também de duas testemunhas.

Mas será que isso é uma praxe do mundo dos contratos ou existe um motivo relevante?

Posso adiantar que existe um ótimo motivo para que isso aconteça.

Eu já ouvi algumas vezes de clientes, amigos e familiares que não era necessário a assinatura de testemunha, pois havia confiança um no outro.

O uso, para não dizer o hábito, de qualificar e colher a assinatura de duas testemunhas em um contrato não está ligado à sua existência ou mesmo sua validade jurídica, nem tampouco a confiança existente entre as partes.

Digo isso porque o fato que nem todos tem conhecimento é que o contrato produz seus efeitos com ou sem a assinatura das testemunhas.

Então se não é requisito de validade, por que eu devo me preocupar?

A resposta para essa pergunta é simples. Você deve se preocupar e optar por colher a assinatura das testemunhas para conferir executividade ao seu contrato.

Explico. O nosso Código de Processo Civil, no Capítulo IV, especificamente no artigo 784, o qual trata dos requisitos necessários para realizar qualquer execução, traz claramente que somente é título executivo extrajudicial o contrato particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas. Vejamos:

Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:
I - a letra de câmbio, a nota promissória, a duplicata, a debênture e o cheque;
II - a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor;
III - o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas;
IV - o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela Advocacia Pública, pelos advogados dos transatores ou por conciliador ou mediador credenciado por tribunal;
V - o contrato garantido por hipoteca, penhor, anticrese ou outro direito real de garantia e aquele garantido por caução;
VI - o contrato de seguro de vida em caso de morte;
VII - o crédito decorrente de foro e laudêmio;
VIII - o crédito, documentalmente comprovado, decorrente de aluguel de imóvel, bem como de encargos acessórios, tais como taxas e despesas de condomínio;
IX - a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, correspondente aos créditos inscritos na forma da lei;
X - o crédito referente às contribuições ordinárias ou extraordinárias de condomínio edilício, previstas na respectiva convenção ou aprovadas em assembleia geral, desde que documentalmente comprovadas;
XI - a certidão expedida por serventia notarial ou de registro relativa a valores de emolumentos e demais despesas devidas pelos atos por ela praticados, fixados nas tabelas estabelecidas em lei;
XII - todos os demais títulos aos quais, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva.

Desse dispositivo legal podemos entender que, ocorrendo o inadimplemento contratual, ou seja, o descumprimento do contrato, seja qual for o motivo, para que as partes possam entrar com uma ação de execução perante o Judiciário é imprescindível ter na minuta contratual a assinatura de duas testemunhas.

Quando o contrato não tem a assinatura das testemunhas, o que acontece?

A ausência de testemunhas no contrato não impossibilita a sua cobrança na via judicial, mas deixa o procedimento mais demorado, pois será necessário ingressar com o que chamamos de processo de conhecimento, para transformar aquele contrato em um título executivo judicial, ou seja, proveniente de uma decisão judicial.

Esse procedimento demandará mais tempo em um cenário que já é demorado, como é o caso dos processos judiciais.

Uma observação importante é que as testemunhas não possuem qualquer responsabilidade contratual, apenas figuram como um mecanismo de executividade ao contrato, portanto, somente as partes envolvidas naquela relação são responsáveis pelas obrigações ali constantes.

Para encerrar esse artigo, deixo uma dica para os seus contratos: sempre que possível tenha o cuidado de colher a assinatura de duas testemunhas, isso trará mais agilidade para uma eventual execução do instrumento, afinal tempo é dinheiro, não é mesmo?

Gostou do conteúdo? Espero que possa te ajudar.

E até o próximo artigo!


49 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

A necessidade de testemunhas é um dos indicios de uma sociedade que não tem muita credbilidade. Na prática, quem assina como testemunha, nem le o que esta assinando. Assim podemos qualificar tambem como uma sociedade tapada.
Ja a necessidade de ter que reconhecer firma em cartório é um indicio de uma sociedade com ambiente tóxico de negócios, arcaica, enrraizada no parasitismo corporativo.

Muito pouca gente no Brasil sustenta a palavra. Nem mesmo com contrato escrito cumprem o que combinam. Essa é a verdade de nosso ambiente de negócios.
Exemplo recente o executivo de empresa Multinacional Farmacêutica depondo na CPI no Senado Federal. Obviamente ele pensava que aquilo era muito sério. Tal pensamento não passa na cabeça dos políticos que lá depõe.
A linguagem corporal é muito diferente dos políticos e do executivo da empresa multinacional.
Por estas e outras que nosso ambiente de negócios é prejudicial a desenvolvimento pleno de nosso país.

As testemunhas são um mecanismo de celeridade processual. Entendido.
Só gostaria de saber o seguinte:
- O fato de haver reconhecimento das assinaturas das partes, em cartório, por si só, não eximiria dessa formalidade testemunhal!?

Sim, pois nesse caso, se enquadraria no previsto no inciso II do art. 784 "a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor;".

Excelente pergunta! Aguardo respostas.

Olá Fátima! Ótima pergunta! Entendo que as duas coisas são diferentes e não se confundem. O contrato sem firma reconhecida e com a assinatura de duas testemunhas tem caráter executivo, já um contrato com firma reconhecida, sem a assinatura das testemunhas não possui a mesma executividade de modo geral.

A Lei não fala se as mesmas testemunhas têm de configurar nas tantas vias. Portanto, tanto faz que sejam colhidas na mesma hora, ou não, ou até mesmo que sejam diferentes nas diversas vias. Considera-se uma falha do legislador?

Esclarecimentos favoráveis para tornar o contrato mais fidedigno para o Locador.

Vou pedir licença para discordar. Um dos títulos executivos é o documento particular assinado por duas testemunhas. Há outros documentos particulares específicos que dispensam testemunhas. Fossem necessárias testemunhas em todos os documetos particulares, a exigência seria prevista em parágrafo e não em um dos incisos.

Há jurisprudência abundante, em especial decorrente de créditos de locação.

Olá Luis! Agradeço pelo comentário. De fato existem exceções, mas no artigo expliquei a regra geral. Como no Brasil não temos segurança jurídica em muitas situações, considero importante colher a assinatura das testemunhas, pois já vi julgamentos que não conferiram executividade ao contrato pela ausência.

Ótimo trabalho. Parabéns

Olá Fábio! Obrigada pelo feedback.

Olá Anderson, que bom que gostou!

👏🏻👏🏻👏🏻Muito bom.

Olá Dra, muito obrigada pelo feedback!

Muito bom! Bem explicado! Definitivamente esclarecedor! Obrigado!

Olá Paulo, que bom que o artigo ajudou e esclareceu. Obrigada!

Muito Pior é o buraco legislativo sobre isso...
Já vi entendimento judicial que não precisam as testemunhas estarem presentes no ato. Podem assinar o contrato depois.
E as partes que confeccionam contratos com "campo" assinaturas de testemunhas e não as assinam no ato. E após cada parte pega duas testemunhas diferentes em cada via do contrato? Tem validade?
Mais ainda pior...
Assinam o contrato como testemunhas pessoas que são funcionárias de uma das partes.
TODOS OS EXEMPLOS ACONTECEM EM CONTRATOS BANCÁRIOS.

Parabéns, Dra Daniele! Didático, objetivo e muito útil. Sou advogada mas, como não estou atuando, desconheço muita coisa de processo civil.

Olá Marlene! Agradeço o comentário e o feedback, minha intenção é trazer conteúdo útil e que possa ajudar as pessoas de alguma forma.

As testemunhas podem ser apenas de uma das partes, quando a outra não a colhe?

Ótima pergunta Ezion! O Código Civil diz que as testemunhas não devem ter interesse financeiro no contrato que assinam, então se as partes concordarem pode ser de apenas uma das partes sim.

Desnecessário as testemunhas, na prática. Não tira a executividade

Muitorlucidador. Afinal, tido que puder abreviar a duraçaom de um processo é valido.

Olá José! Obrigada pelo feedback! Concordo com você.

Parabéns pelo artigo, bem explicado e objetivo. Contudo, podemos responder sim e não para a sua pergunta. Vejamos: O artigo 221, inciso II da Lei n. 6015/73 exige o reconhecimento de firma das partes e das "testemunhas", para que o contrato particular possa ser registrado no Registro de Imóveis, na matrícula do imóvel respectivo, e poder gerar o direito real ao promitente comprador. Como podemos observar, aqui nesse exemplo a assinatura das testemunhas é indispensável, além do reconhecimento de firma. Por outro lado, a legislação civil não exige a assinatura de testemunhas para a validade do contrato. O contrato particular sem assinatura de duas testemunhas não lhe retira a validade, assim como na maioria dos casos o reconhecimento de firma da assinatura não é requisito de validade do documento, podendo ser dispensado. Ou seja, um documento com assinatura simples também será válido e poderá ser executado, desde que presentes os demais requisitos legais. Por fim, agora se precisamos garantir força executiva ao contrato, torna-se indispensável a assinatura também por duas testemunhas. Desde já agradeço o espaço para registar esse comentário.

Olá Fernando. Concordo com você. Obrigada pelo comentários e adendos!

Boa noite!
Penso que no caso de um instrumento particular de confissão de dívida sem a devida assinatura de duas testemunhas pode embasar uma ação MONITÓRIA que é menos célere que a Execução mas muito mais rápida que a ação de conhecimento. Abraços.

Olá, concordo com você. Obrigada pelo adendo!

Bem, como não sou do "meio" (advogado" e, sim apenas e tão somente um "curioso", apaixonado e ávido de conhecimentos jurídicos, confesso que, após ler todos os comentários já postados, vou citar aqui o que certa vez um meu amigo japonês disse-me quando não havia entendido o que lhe expliquei: "Confundiu meu cabeça, né"...Já fiz e assinei vários contratos durante toda minha existência (79 anos) e, na medida do possível sempre peguei a assinatura de duas testemunhas (não é fácil conseguir quem queira assinar), mas jamais imaginava que havia tanta "celeuma" em cima disso, como se já não bastasse o tal "reconhecimento de firma"...

Que dizer da instituição "casamento"!


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sexta-feira, 14 de maio de 2021

Luiz Gama: a desconhecida ação judicial do advogado negro que libertou 217 escravos no século 19

 

Luiz Gama: a desconhecida ação judicial do advogado negro que libertou 217 escravos no século 19


Em um dia do mês junho de 1869, uma nota no jornal chamou a atenção de Luiz Gama, advogado considerado um herói nacional por seu ativismo abolicionista no século 19. A notícia relatava que a família do comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto, um dos homens mais ricos do Império, estava brigando na Justiça pelo espólio do patriarca, morto repentinamente em Portugal.

Ferreira Netto tinha uma grande fortuna: 3 mil contos de réis (cerca de R$ 400 milhões em valores atuais), distribuídos em inúmeras fazendas, armazéns comerciais, sociedade em empresas lucrativas, e centenas de pessoas negras escravizadas em suas propriedades.

Em uma linha de seu testamento, publicado em um jornal um ano antes, o comendador fez um pedido comum entre grandes proprietários de escravos da época: depois de sua morte, ele gostaria que todos fossem libertados. A "alforria post mortem" era vista como uma espécie de "redenção moral e de consciência", pois, ao final da vida, os escravocratas também queriam garantir um espacinho no céu.

Ao ler a notícia, Luiz Gama procurou saber se a vontade do morto havia sido cumprida: as 217 pessoas escravizadas pelo comendador tinham sido libertadas como determinava o testamento? Logo descobriu que não, como ocorria com frequência em documentos do tipo. A família e alguns sócios brigavam pelos bens, mas os cativos continuaram na mesma situação.

O advogado, em início de carreira, decidiu acionar a Justiça para que a liberdade e a vontade do empresário fossem respeitadas. O processo judicial que se seguiu, conhecido nos jornais da época como "Questão Netto", é apontado por historiadores consultados pela BBC News Brasil como a maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas. Por ora, não há registro de processo que envolva mais pessoas, segundo eles.

O historiador Bruno Rodrigues de Lima precisou decifrar as várias caligrafias do processo

Essa ação de Luiz Gama foi encontrada recentemente pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em História e Teoria do Direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha.

A peça de mais de mil páginas - toda escrita à mão - estava armazenada no Arquivo Nacional e não há registros de que ela tenha sido analisada em profundidade. "Não há grandes registros desse processo na historiografia sobre Luiz Gama. Encontrei citações nas décadas seguintes ao processo e uma uma nota de rodapé num livro dos anos 1990", diz Lima, que há mais de uma década pesquisa a vida e a obra do abolicionista.

Lima fez uma cópia do processo e a levou para a Alemanha, onde passou meses decifrando as várias caligrafias presentes no calhamaço. "Logo identifiquei a letra de Gama, que era de mais fácil leitura. Mas havia várias outras, como a de escrivães, promotores e juízes", explica.

A análise do processo agora fará parte da tese de doutorado que o historiador vai apresentar ao final deste ano sobre a obra jurídica do abolicionista. Além desse, a tese contará com dezenas de outros processos ainda desconhecidos, diz.

A 'Questão Netto'

Lima conta que o processo passou a correr em Santos, litoral sul de São Paulo, por causa de uma pendenga judicial do comendador Ferreira Netto com um sócio da cidade. Inicialmente, Luiz Gama se apresentou ao juiz da comarca apenas como um interessado no caso.

"Ele fez uma petição ao juiz de maneira bastante escorregadia, porque ele não era parte naquela briga judicial pela herança. Ele entra no processo como um cidadão que queria saber o que aconteceu com os escravizados. O juiz respondeu que eles precisavam de um representante", diz.

A princípio, Gama não foi nomeado "curador" dos interesses do grupo, mas, depois de outros cidadãos se recusarem a participar da ação, ele foi indicado pelo próprio juiz para assumir a tarefa.

O abolicionista não sabia quem estava representando de fato, mas mandou emissários para descobrir os nomes, idades e há quanto tempo pertenciam ao comendador.

O historiador Bruno Rodrigues de Lima estuda a vida e a obra de Luiz Gama há mais de uma década

No total, havia 217 escravizados nas propriedades do fidalgo - gente de Angola, Moçambique, Congo, entre outras nações africanas. "Gama recebe informações com nome, idade, naturalidade, histórias de vida. Havia famílias inteiras nas fazendas", diz Lima.

Mas como garantir que o direito à liberdade, recém-conquistado com a morte do comendador, fosse garantido? Lima acredita que a "Questão Netto" tenha sido o primeiro grande processo de liberdade de Luiz Gama, que, na época, havia sido demitido de um cargo na polícia.

Quem era Luiz Gama?

Nascido em 1830 em Salvador, Luiz Gama teve de lidar com a escravidão desde cedo. Sua mãe era uma mulher negra e seu pai, um fidalgo de origem portuguesa.

Luiz Gama atuou como advogado em São Paulo, onde trabalhou na polícia. A imagem mostra a praça da Sé

"A vida dele foi singular em todos os aspectos. Muitos historiadores acreditam que ele era filho de Luiza Mahin, uma guerreira que participou de várias revoltas negras na Bahia", diz Zulu Araújo, presidente da Fundação Pedro Calmon e ex-presidente da Fundação Palmares durante o governo Lula.

"Mas não há certeza de que Mahin era sua mãe mesmo ou se foi uma história inventada por Gama. O fato é que a mãe dele desapareceu, e ele foi criado pelo pai."

Aos 10 anos, Gama foi vendido pelo próprio pai a um contrabandista do Rio de Janeiro, que logo o repassou a um fazendeiro paulista. O dinheiro da venda serviria para o pai saldar uma dívida de jogo. Na adolescência, ele foi escravizado, mas, com 18 anos, conseguiu provas de sua liberdade e fugiu do cativeiro.

Aprendeu a ler e escrever, foi poeta e trabalhou como jornalista, tipógrafo e escrivão de polícia, onde passou a lidar diariamente com a legislação. Autodidata, o jovem tentou cursar Direito na tradicional Faculdade do Largo São Francisco, mas foi rejeitado pela elite que comandava a instituição. Ele só ganharia o título oficial de advogado, dado pela OAB, em 2015, quando sua morte completou 133 anos.

"Gama era uma pessoa 'improvável' para a época, porque era negro e pobre. Ele aprende o Direito na prática, trabalhando na polícia e frequentando a biblioteca particular de Furtado de Mendonça, chefe da polícia e amigo que o protegia", explica Tâmis Parron, professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Commun (Núcleo de Estudos de História Comparada Mundial).

"A grande sacada dele foi perceber a centralidade do Direito na luta abolicionista e como estratégia para destruir a escravidão. O ativismo jurídico tinha sido muito importante para o abolicionismo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Ele o trouxe para o Brasil. Gama percebeu que a própria legislação podia ser usada contra os senhores", diz Parron.

Estima-se que o advogado tenha conseguido libertar centenas de escravizados com ações na Justiça - há centenas de processos de liberdade com seu nome no arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo, material em boa parte desconhecido da historiografia. Muitas vezes, ele trabalhava de graça.

Mas como ele conseguia libertar tantas pessoas?

Primeiro, é preciso voltar um pouco no tempo. Em 7 de novembro de 1831, pressionado pela Inglaterra, o Império brasileiro assinou uma lei que proibia o tráfico de africanos ao Brasil. Ou seja, a partir daquele momento, qualquer africano trazido ao país deveria ser libertado imediatamente.

O processo tem mais de mil página e está armazenado no Arquivo Nacional

Mas isso não aconteceu na prática. Embora embarcações inglesas patrulhassem a costa brasileira em busca de navios negreiros, o contrabando era bastante comum no país - essa discrepância entre o que estava na lei e a vida real fez com que a norma ganhasse o apelido de "lei para inglês ver".

Estima-se que mais de 700 mil africanos foram trazidos ilegalmente para o Brasil entre 1831 e 13 de maio de 1888, quando a escravidão foi finalmente abolida pela Lei Áurea. Em todo o período de escravidão, foram cerca cinco milhões de pessoas.

Luiz Gama passou a atuar em casos de pessoas contrabandeadas ao país depois dessa legislação. "Ele reunia provas para demonstrar que, se a pessoa tinha nascido na África e foi trazida ao Brasil depois de 1831, ela fatalmente foi traficada e sua condição de escravizada era ilegal. Esse foi um dos argumentos que ele utilizou para conseguir libertar centenas de pessoas", conta Bruno Lima.

Segundo Tâmis Parron, o tráfico negreiro ocorria com o consentimento e a participação do Império, que dependia da economia escravista. "Para existir e atuar, o crime organizado precisa da participação ou da anuência de alguma esfera da burocracia estatal", diz.

"O que Gama fez com seu ativismo foi escancarar que o Estado e o escravismo brasileiros, além de roubarem os direitos naturais e inalienáveis do homem, eram literalmente ladrões e criminosos, pois burlavam a lei que eles próprios criaram", completa Parron.

Escravizados urbanos coletando água no Brasil da década de 1830

Liberdade, vidas perdidas

Luiz Gama apresentou uma tese jurídica bastante simples, porém inédita, para tentar ganhar a ação contra a família e os sócios do comendador Ferreira Netto, que queriam manter a propriedade de seus 217 cativos.

"Ele teve a sacada de usar a voz do senhor de escravos como argumento jurídico contra ele próprio. O testamento havia sido publicado em vida na imprensa. Então, a estratégia dele foi a seguinte: se o próprio comendador escreveu que gostaria que os escravizados fossem libertados, por que eles ainda não estavam livres?", conta Bruno Lima.

Ou seja, o advogado argumentou que, quando Ferreira Netto morreu, os cativos ficaram livres imediatamente, pois o testamento assim o pregava. Para Gama, o papel da Justiça no caso não seria conceder a liberdade aos escravizados, mas devolvê-la a eles.

"Ele para de usar a palavra 'escravo' no processo, chama-os de libertandos. Na época, havia o crime de redução de uma pessoa livre à condição de escravizado. Isso não era permitido pela lei. Então, Gama inverte o jogo, mostrando ao juiz que a família do comendador estava cometendo um crime ao escravizar pessoas que já eram declaradas livres. É um argumento meticuloso e muito bem pensado", explica Lima.

Os herdeiros da herança, temendo perder um bem tão valioso, contrataram um advogado renomado para representá-los no tribunal: José Bonifácio, poeta romântico, professor de Direito no Largo São Francisco, conhecido como "o Moço".

Segundo o historiador, a ideia da família era ter como defensor um advogado que não fosse identificado com a escravidão. Bonifácio era um político liberal e abolicionista. De fato, anos depois do caso, ele participaria como senador da campanha pelo fim do regime. No processo do comendador, porém, defendeu os escravocratas.

Curiosamente, o argumento jurídico de Bonifácio, que contestou o trecho do testamento que libertava os cativos, começava de maneira um pouco culpada: "Sem opor-me à liberdade, mas…".

O tráfico de pessoas da África para as Américas durou mais de três séculos

Para Lima, ao longo do processo, Bonifácio "jogou sua imagem de abolicionista no lixo". "Se ele começou escrevendo que não se opunha à liberdade, no restante da ação agiu como um escravocrata confesso, defendendo de maneira ensandecida a família do comendador", aponta o historiador.

No auge do processo, quando a causa ganhou repercussão em jornais da corte, Luiz Gama contou estar sofrendo ameaças de morte. Mencionou o fato em dois textos escritos em uma mesma semana de setembro de 1870, quando houve uma audiência importante do caso:

Ao jornal Correio Paulistano, revelou uma trama da chefia da polícia para matá-lo. Já em uma carta ao filho, que tinha apenas 11 anos na época, escreveu o seguinte: "Lembra-te de escrevi essas linhas em momento supremo, sob ameaça de assassinato."

Porém, apesar da pressão da elite escravocrata, o juiz de Santos deu ganho de causa ao argumento de Gama, em tese libertando os 217 cativos. Mas Bonifácio apelou a outras instâncias no interior de São Paulo, numa chicana jurídica que prolongou o processo e adiou a libertação das vítimas.

Em 1872, o julgamento do mérito finalmente chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, a última instância, no Rio de Janeiro. No tribunal, Gama foi representado por um amigo, o advogado Saldanha Marinho, pois a corte não aceitava sua atuação fora de São Paulo. O abolicionista escreveu a sustentação final, apresentada por Marinho, e acompanhou o julgamento no palácio da Justiça.

Os ministros concordaram com a tese de Gama, mas a vitória não foi completa. Eles determinaram um prazo de 12 anos para a libertação dos 217 escravizados a partir da feitura do testamento, de 1866. Ou seja, os cativos tiveram que prestar serviços forçados para os herdeiros do comendador até 1878, quando finalmente foram libertados.

O tráfico de africanos foi proibido no Brasil em 1831, mas o contrabando continuou por várias décadas

"Essa liberdade condicional foi uma derrota para Gama, mas a vitória dele no mérito da causa, uma alforria coletiva, foi uma coisa escandalosa para a época. Isso nunca tinha acontecido no Brasil. São raríssimas as libertações coletivas no sistema escravocrata das Américas, o que dirá de uma alforria de 217 pessoas", explica Lima.

A vitória histórica de Gama na maior corte do país não foi noticiada com destaque na imprensa paulista, bastante ligada a fazendeiros escravocratas. Temia-se que a repercussão da história pudesse gerar novos processos. "Saiu apenas uma pequena nota em um jornal, e ela só informava o final da causa", diz o historiador.

Ao final do prazo, em 1878, um jornal paulista noticiou uma grande festa em comemoração pela libertação dos cativos do comendador Ferreira Netto. No entanto, das 217 pessoas representadas por Gama, apenas 130 ainda estavam vivas para gozar a liberdade finalmente conquistada, segundo a publicação.

"No fim das contas, Gama não se sentiu vitorioso, talvez por isso ele pouco tenha falado dela depois. Mesmo tendo ganho o mérito, 80 vidas foram perdidas", diz Lima.

Maior ação coletiva

A "Questão Netto" foi a maior causa de libertação defendida por Luiz Gama. Segundo Bruno Lima, ela chegou a ser citada brevemente por historiadores nas décadas seguintes, mas caiu no esquecimento.

A segunda maior ação de Gama, por exemplo, tinha 18 pessoas, e correu em Pindamonhangaba, interior de São Paulo. Portanto, dado que o advogado foi o maior ativista do abolicionismo jurídico do país, o caso dos 217 cativos pode ser o maior processo do tipo na história do Brasil.

O historiador Tâmis Parron, da UFF, vai mais longe: o catatau encontrado e analisado por Bruno Lima pode ser a maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas até hoje.

"Nos Estados Unidos e no restante da América, os processos de alforria eram bem distintos. Nos EUA, por exemplo, a alforria não dependia apenas da vontade do senhor, como no Brasil, mas sim da autorização de várias instâncias da burocracia estatal. Era difícil ter ações coletivas. Nunca li nada na historiografia do abolicionismo sobre um processo que envolvesse tantas pessoas", diz.

Para Lima, a descoberta abre brechas importantes nas pesquisas sobre o abolicionismo brasileiro e sobre a trajetória de um de seus maiores expoentes. Em seu doutorado, ele analisa principalmente os argumentos jurídicos das partes, mas outros aspectos da ação ainda podem ser pesquisados.

"Há muito a se estudar ainda sobre esse processo: quem eram esses escravizados? O que aconteceu com eles depois? Outro ponto é que ele joga luz sobre a figura de José Bonifácio, visto historicamente como um grande abolicionista, mas que na ação defendeu escravocratas de maneira bastante enfática", aponta o historiador.

Apagamento

Existem algumas biografias sobre Luiz Gama, mas sua obra completa e sua atuação como advogado ainda não são de todo conhecidas. Há diversas razões para explicar os motivos desse esquecimento.

"Primeiro, existe um problema estrutural da pesquisa acadêmica no Brasil que é o subfinanciamento. É uma vergonha que a obra de Luiz Gama não esteja toda publicada. Se ele fosse americano, dada a sua importância histórica, tudo o que ele escreveu já estaria na vigésima edição. Qualquer assunto da história do Brasil ainda é um terreno a se desbravar", diz Tâmis Parron.

Para ele, outro problema afeta os estudos sobre o abolicionismo. "Com o racismo estrutural e o negacionismo em relação à escravidão e às desigualdades sociorraciais, não é difícil entender por que esse grande abolicionista da história mundial não tem sua obra estudada no país", completa.

Já Zulu Araújo, ex-presidente da Fundação Palmares e doutorando em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Bahia, acredita que a elite brasileira tentou "branquear" a história ao associar o fim da escravidão apenas à Princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea em 1888, e não ao trabalho incessante dos abolicionistas.

"Tentou-se apagar a escravidão da história do país com a assinatura de uma senhora da elite. Esse tipo de narrativa apaga a participação popular no processo abolicionista e as lideranças que tinham origem popular, como Luiz Gama", diz. "Ele era um negro que viveu todas as instâncias da escravidão: nasceu livre, foi vendido pelo próprio pai, tornou-se escravo e depois se libertou para defender outros escravizados."

Segundo Zulu, o movimento negro, depois dos anos 1970, escolheu Zumbi dos Palmares como seu maior símbolo na luta contra o racismo. "Para se contrapor à Princesa Isabel, escolheu-se uma figura guerreira como referência. Foi uma escolha histórica. Acredito que hoje, com o maior acesso da população negra às universidades, outras pessoas importantes voltarão a ser estudadas. Acredito que uma das saídas para o movimento é resgatar outros símbolos da nossa história, como Luiz Gama", diz.

Por Leandro Machado - BBC News Brasil em São Paulo

Fonte: BBC