O DIREITO SUCESSÓRIO E O INSTITUTO DA FERTILIZAÇÃO IN VITRO POST MORTEM
DE EMBRIÕES CRIOPRESERVADOS
PARTE 03.
Publicado
em 08/2014. Elaborado em 11/2012.
4.A QUESTÃO SUCESSÓRIA RELACIONADA COM A FERTILIZAÇÃO IN VITRO POST
MORTEM DE EMBRIÕES CRIOPRESERVADOS
. 4.1. A FILIAÇÃO
A filiação, nada mais é que o reconhecimento de paternidade e/ou
maternidade conferido a um indivíduo, quer seja por laços biológicos, quer por
laços afetivos. Assim, tem-se que não há diferenças entre os filhos havidos ou
não na constância do casamento, bem como entre os filhos adotivos, pois o
próprio Código Civil veda a discriminação entre eles. Como corolário dessa
premissa, observa-se que os filhos, não importando de que modo tenham se
inserido no seio familiar, são todos iguais para o Direito.
Para se determinar a paternidade e maternidade de uma criança deve-se
levar em consideração muitos fatores de cunho moral benéficos ao filho. O ser
gerado não pode ser responsabilizado, muito menos suportar os ônus daqueles que
o conceberam.
.Se, para o Código Civil de 2002, a procriação artificial realizada após
a morte do de cujus, origina filhos como se concebidos fossem na constância do
casamento, é no mínimo lacunoso, dizer que estes mesmos filhos não tem
capacidade para suceder, pois não estavam vivos na época da abertura da
sucessão.
Como já debatido anteriormente, o filho existe desde o momento da
fecundação, e, se naquele momento já havia vida, é óbvio que também a ele já
eram assegurados os direitos.
.Não se pode esquecer que a herança genética é verdadeiro direito da
personalidade, assim como o nome, devendo por isso mesmo ser protegida. Tal
herança não pode ser disponível, nem tampouco renunciável, pois, assim sendo,
constitui fator integrante da dignidade da pessoa humana.
Como visto alhures, a inseminação artificial post mortem consiste na
utilização de material genético reprodutor de um homem e de uma mulher. Assim,
tem-se que tal procedimento difere-se do que ocorre, quando ainda vivo o doador
dos gametas masculinos, apenas quanto ao momento da fecundação propriamente
dita.
Destarte, tanto em uma como em outra situação, existente se faz a
herança genética, e, consequentemente, os laços sanguíneos. A origem genética
vai muito além do momento de realização do procedimento, sendo tal ponto
irrelevante para a configuração da filiação, principalmente quando realizada
com o pleno consentimento do de cujus.
Não poderia ser diferente o raciocínio, tendo em vista que a própria
legislação civilista prevê a presunção de paternidade dos gerado via
fertilização in vitro. Dessa forma, afastar um direito já pacificado por mero
fator cronológico traz certa insegurança jurídica, principalmente quanto aos
direitos sucessórios e de filiação de uma pessoa que, como se disse acima, não
pode nem deve suportar o peso de uma omissão legislativa e interpretativa dos
aplicadores do direito.
Faz-se imperioso registrar que, o direito vem instituindo,
hodiernamente, novos paradigmas de sua aplicação, ressaltando cada vez mais a função
social. Assim, tem-se que não se pode deixar à margem esses conceitos quando se
trata de pessoas, mesmo porque mais importante se faz mensurar, neste caso, o
caráter social do que a pura legalidade, tendo em vista o que diz a
hermenêutica jurídica.
O direito das sucessões, em sua acepção jurídica, tem como fundamento o
direito da propriedade. Desta feita, no momento da morte surge o direito
hereditário, com a substituição do falecido pelos seus sucessores nas relações
jurídicas em que o de cujus figurava. Tal sucessão é regida pelo princípio da
saisine, o qual, seguindo um critério cronológico, transmite o domínio e a
posse dos bens do falecido, no momento do óbito, aos herdeiros. Esse
patrimônio, nesse momento é indivisível e chama-se espólio.
O patrimônio mencionado é a herança, composta pelos bens, direitos e
obrigações do de cujus. Tem-se, portanto, que são pressupostos da sucessão
tanto a morte do autor da herança quanto a vocação hereditária. Somente após
aberta a vocação e respeitada sua ordem é que se adjudicará os bens a cada
herdeiro, recebendo cada um o seu quinhão, ou seja, sua quota parte.
Dito isto, fácil é observar que para o direito das sucessões, o fator
temporal é muito importante, o que não deveria ocorrer, tendo em vista que a
filiação não se define pelo tempo, mas por laços genéticos. Ora, se o objetivo
é proteger o patrimônio do falecido, outorgando-o aos seus herdeiros, que são
quem mais provavelmente protegeriam este patrimônio, não faz sentido excluir
deste rol os filhos havidos pelo procedimento que neste ensaio se delineia,
simplesmente por uma questão cronológica.
Tal assertiva se fortalece muito mais quando a autorização para a
fertilização in vitro post mortem ocorre com a aquiescência do progenitor, o
que se configura em verdadeira manifestação de vontade. Diversos são os
posicionamentos doutrinários sobre o tema, o que revela o quão complicada é a
celeuma. Portanto, necessário se faz entender como os jurisconsultos tem
enfrentado o caso, para, posteriormente, tecer breves anotações.
4.2. VISÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DA SUCESSÃO
POST MORTEM
O Código Civil de 2002 ao estabelecer, em seu artigo 1798, que somente
as pessoas vivas e já concebidas podem herdar no momento de aberta a sucessão,
gera verdadeira polêmica em se tratando de reprodução assistida. Tal Códex, ao
tratar do assunto nem autoriza nem regulamenta este tipo de reprodução, mas
apenas constata sua existência de forma lacunosa. Nessa seara de discussões, a
doutrina basicamente se divide m dois ramos.
A primeira vertente doutrinária aduz que deve ser proibida a ocorrência
da fertilização in vitro post mortem, porque mesmo havendo o laço genético
entre os progenitores e a criança, esta filiação é juridicamente
extramatrimonial. Segundo afirmam, o gerado não terá pai e nem poderá ser
registrado como filho matrimonial do doador, já que nascido 300 dias após a
cessação do vínculo conjugal, em função da morte de um dos consortes.
De mais a mais, prelecionam que a prática causaria verdadeira insegurança
jurídica aos gerados anteriormente a época da sucessão, pois estes teriam que
esperar, sem saber quanto tempo, pelo nascimento de alguém, ficando até então o
patrimônio indivisível.
Partidário desta posição é o doutrinador Guilherme Calmon Nogueira
(2003; p. 1000), que diz:
É
inegável a vedação do emprego de qualquer das técnicas de reprodução assistida
no período pós-falecimento daquele que anteriormente forneceu seu material
fecundante e consentiu que o embrião formado ou seu material fosse utilizado
para formação de nova pessoa humana. A violação aos princípios da dignidade da
pessoa humana e do melhor interesse da futura criança, além da própria
circunstância de ocorrer afronta ao princípio da igualdade material entre os
filhos sob o prisma (principalmente) das situações jurídicas existenciais, não
autoriza a admissibilidade do recurso a tais técnicas científicas. Assim, a
questão se coloca no campo da inadmissibilidade, pelo ordenamento jurídico
brasileiro, das técnicas de reprodução assistida post mortem. Daí não ser
possível sequer a cogitação da capacidade sucessória condicional (ou especial)
do embrião congelado ou do futuro embrião (caso fosse utilizado o material
fecundante deixado pelo autor da sucessão) por problemas de inconstitucionalidade.
Na mesma esteira de raciocínio, o jurista Sílvio de Salvo Venosa (2007)
entende que nas inseminações após a morte, o Código civil não focou diretamente
do Direito Hereditário dos seres assim gerados, pois para a sucessão continuam
sendo herdeiros aqueles vivos ou concebidos quando da morte.
Também adepto dessa corrente é o renomado autor Eduardo Oliveira Leite
(2003), que entende se tratar de situação anômala, tanto no aspecto da filiação
quanto no campo dos direitos sucessórios, e aduz:
Quanto
à criança concebida por inseminação post mortem, ou seja, criança gerada depois
do falecimento dos progenitores biológicos, pela utilização de sêmen congelado,
é situação anômala, quer no plano do estabelecimento da filiação, quer no do
direito das sucessões. Nesta hipótese a criança não herdará de seu pai porque
não estava concebida no momento da abertura da sucessão.(LEITE, 2003; p. 110)
Continua, dizendo em outra obra:
A
inseminação post mortem (também denominada inseminação intermediária, já que
não é homóloga nem heteróloga) não se justifica porque não há mais o casal, e
poderia acarretar perturbações psicológicas graves em relação à criança e à
mãe, daí a conclusão quanto ao desaconselhamento de tal prática. (LEITE, 1995;
p.154-155)
Posição semelhante é do doutrinador José Roberto Moreira Filho que se
manifesta da seguinte forma:
Quanto
à inseminação post mortem, temos que atualmente ela se faz quando o sêmen ou o
óvulo do de cujus é fertilizado após sua morte. Nestes caso, por ter sido a
concepção efetivada após a morte do de cujus, não há que se falar em direitos
sucessórios a ele. Há tendências doutrinária admitindo que tanto o não
concebido quanto o não nidado, possam ter direitos sucessórios e o
reconhecimento de sua filiação, desde que a pessoa assim lhe assegure através
de testamento. O direito sucessório, portanto, decorre da filiação e, a partir
da determinação do vínculo de paternidade , será resolvido. Destaca-se que o
consentimento dado em vida é essencial para se determinarem os direitos do
nascituro e para formação do vínculo de filiação.( MOREIRA FILHO, 2002.)
Vertente semelhante é a que segue a ilustre Maria Helena Diniz (1995; p.
91) quando afirma:
É
preciso evitar tais práticas, pois a criança, embora possa ser filha genética,
por exemplo, do marido de sua mãe, será juridicamente, extramatrimonial, pois
não terá pai, nem poderá ser registrada como filha matrimonial em nome do
doador, já que nasceu 300 dias da cessação do vínculo conjugal em razão da
morte de um dos consortes, E, além disso, o morto não mais exerce direitos, nem
deveres a cumprir. Não há como aplicar a presunção de paternidade, uma vez que
o matrimônio se extingue com a morte, nem como conferir direitos sucessórios ao
que nascer por técnica conceptiva port mortem, pois não estava gerado por
ocasião da morte de seu pai genético (...). Por isso, necessário será que se
proíba legalmente a reprodução assistida post mortem ,e se, porventura, houver
permissão legal, dever-se-á prescrever quais serão os direitos do filho,
inclusive sucessórios.
Entretanto, existe uma segunda corrente que valoriza mais os princípios
constitucionais da igualdade entre os filhos e a liberdade de escolha do casal,
bem como o planejamento familiar. Para esta corrente o embrião poderá sim
herdar. Um dos defensores desta corrente é o magistrado José Luiz Gavião de
Almeida (2003; p. 104), para quem:
E
reconhecendo o legislador efeitos pessoais ao concepturo (relação de filiação),
não se justifica o plurido de afastar os efeitos patrimoniais, especialmente o
hereditário. Essa sistemática é reminiscência do antigo tratamento dado aos
filhos, que eram diferenciados conforme a chancela que lhes era aposta no
nascimento. Nem todos os ilegítimos ficavam sem direitos sucessórios. Mas aos
privados desse direito também não nascia relação de filiação. Agora, quando a
lei garante o vínculo, não se justifica privar o infante de legitimação para
recolher a herança.
Na mesma linha de pensamento, encontra-se a professora Giselda Maria
Fernandes Novaes Hironaka que entende que o conceito de nascituro compreende o
conceito de embrião, sendo desastrosa a separação entre ambos e conclui:
Supondo
que tenha havido a autorização e que os demais requisitos tenham sido
observados, admitindo-se, assim, a inseminação post mortem, operar-se-á o
vínculo parental de filiação, com todas as conseqüências daí resultantes,
conforme a regra basilar da Constituição Federal, pelo seu art. 226, § 6º,
incluindo os direitos sucessórios relativamente à herança do pai falecido.
(HIRONAKA, 2007)
Também partidários desta corrente, Francisco José Cahali e Giselda Maria
Fernandes Novaes Hironaka (2003), salientando que era inadmissível a
constituição de vínculo de parentesco entre a criança gerada e o falecido,
doador do material genético, tendo em vista que a morte extinguia a
personalidade, porém com o Código Civil de 2002, essa aplicação torna-se obsoleta,
e asseveram:
Nesse
contexto, embora a contragosto, concluímos terem os filhos assim concebidos o
mesmo direito sucessório que qualquer outro filho, havido pelos meios naturais.
E estaremos diante de tormentoso problema quando verificado o nascimento após
anos do término do inventário, pois toda a destinação patrimonial estará
comprometida. [...] Por isso, quer parecer que a solução que melhor se amolda à
hipótese é a que determina o rompimento do testamento na hipótese de virem um
ou mais desse embriões a aderir a um útero apto a garantir-lhes desenvolvimento
saudável e posterior nascimento. Com isso, estar-se-á adequando a norma legal
às novas exigências sociais decorrentes da evolução científica. E o mesmo se
alcançará quando, inexistindo testamento, vier o herdeiro nascido ao depois
pleitear e receber seu quinhão hereditário, como se fosse um filho reconhecido
por posterior ação de investigação de paternidade.(CAHALI; HIRONAKA, 2003)
Muito embora a posição doutrinária contrária ao reconhecimento dos
direitos sucessórios do concebido via inseminação artificial post mortem pareça
ser majoritária, o que se verifica, em verdade, é uma cisão muito grande entre
os doutrinadores, razão pela qual o presente tema se demonstra carecedor de
previsão legal, ou mesmo de uma nova roupagem quando da interpretação dos
dispositivos legais já existentes.
4.3. COMPARATIVO COM PROLE EVENTUAL
Segundo o que ensina o Direito Civil, o de cujus, poderá deixar, em
forma de testamento, bens àquele que embora ainda não vivo, possa ser gerado. O
instituto chama-se prole eventual e quer dizer que os filhos ainda não
concebidos de pessoas vivas, poderão herdar, desde que esse nascimento ocorra
em até dois anos da abertura da sucessão. Assim dizem os arts. 1.799 e 1.800 do
CC 2002:
Código Civil:
Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a
suceder:
I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador,
desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;
II - as pessoas jurídicas;
III - as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo
testador sob a forma de fundação.
Art. 1.800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da
herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo
juiz.
§ 1º - Salvo disposição testamentária em contrário, a curatela caberá à
pessoa cujo filho o testador esperava ter por herdeiro, e, sucessivamente, às
pessoas indicadas no art. 1.775.
§ 2º - Os poderes, deveres e responsabilidades do curador, assim
nomeado, regem-se pelas disposições concernentes à curatela dos incapazes, no
que couber.
§ 3º - Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a
sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do
testador.
§ 4º -
Se decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o
herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do
testador, caberão aos herdeiros legítimos.
Dito isto, entende-se que em não ocorrendo o nascimento da prole
esperada, os bens reservados, salvo disposição em contrário, caberão aos
herdeiros legítimos. Assim, verifica-se que o legislador considerou a vontade
do testador, dando azo para que ele procedesse à divisão de seus bens como
imaginado, prevendo, inclusive, o presente instituto.
Considerando-se o que se disse acima, verifica-se que há um
contracenso muito grande na legislação pátria, pois poderá ocorrer a situação
de ser beneficiado herdeiro de um terceiro, através da prole eventual, mas o
filho legítimo, que teve seu congelamento, para posterior gestação, autorizada
pelo falecido, poderá ser excluído da herança simplesmente por falta de
previsão legal.
Explicando o tema, Jussara Maria Leal de Meirelles, assevera, deixando
cristalina a situação:
Em
suma, se os denominados embriões pré-implantatórios não são pessoas a nascer
(nascituros), nem por isso é possível classificá-los como prole eventual (a ser
concebida) posto que concepção já houvesse. De outro lado, por serem em si
mesmos portadores de vida, não podem ser tidos por bens suscetíveis de subordinação
a interesses econômicos dos mais diversos. Conclui-se, pois, que a questão do
destino dos embriões humanos não utilizados para implantação em útero não
encontra acolhida nas categorias impostas pelo Código Civil. Desse modo,
impõe-se distanciá-los da categorização estabelecida tradicionalmente bem como,
sob enfoque da proteção, equipará-los aos demais seres humanos.(MEIRELLES apud
MOREIRA FILHO)
Necessário se faz, portanto delimitar o status jurídico dos embriões
criopreservados. São eles, conforme já defendido nesta monografia, seres
humanos detentores de carga genética própria e existência medicamente
comprovada. Assim, necessitam estes embriões, de proteção jurídica, pois a eles
não se pode imputar as consequências desgostosas da omissão legislativa, que o
deixa desamparado frente a outras categorias já contempladas pelo ordenamento
pátrio.
Não se verifica dignidade da pessoa humana quando não está presente a
proteção Estatal.
Em conseqüência da ausência de previsão legal, não tem se considerado
nascituro, embora erroneamente, o embrião criopreservado que ainda não foi
nidado. Demonstra-se, nessa quadra a lacuna existente, carecedora de proteção.
Noutro diapasão, se este embrião, anteriormente congelado, for implantado no
útero feminino, será ele filho legítimo e terá direitos sucessórios.
Ora, o filho criopreservado ainda não inserido no útero materno em nada
difere do já inserido. Ambos tem a mesma carga genética e ambos possuem o
direito de serem protegidos. Sem observância da vontade do testador, que
consentiu com a realização do procedimento, este embrião, futura criança, se
desenvolverá à margem, sem saber em que consiste juridicamente sua situação.
O que deveria ocorrer seria uma aplicação analógica ao conceito de prole
eventual, podendo o conceito em tela enquadrar o que aqui se defende. Nesse
caso, o embrião congelado poderia herdar de seu progenitor, conseqüência
indubitável decorrente da filiação. Deve-se almejar a vontade expressa do
testador em deferir-lhe a herança e conjugar sua última vontade com a de quem
gestará o embrião, pois, as duas vontades devem, necessariamente, estarem
vinculadas, haja vista ser juridicamente impossível que a manifestação de
vontade do falecido seja o único fator para quem vai, de fato gerar a criança,
e futuro herdeiro e, também será, do mesmo modo, ineficaz que alguém venha
aproveitar-se de uma gestação futura, e aproveitando-se da própria torpeza,
venha a realizar o procedimento com finalidades outras, que não as inerentes ao
sonho de gerar um filho, sem que o de cujus tenha consentido. Entretanto
a aplicação da analogia com o caso de prole eventual merece algumas ressalvas,
como se abordará mais adiante.
Observa-se que, a questão toda vai muito além de interesses
patrimoniais, mas sim em saber que laços unirão este novo indivíduo a família a
qual está inserido, decorrentes da filiação, ainda que esta se dê
posteriormente ao falecimento do progenitor. É óbvio que tal fato faz surgir
alteração na vocação hereditária, mas o argumento pode ser facilmente afastado
se for levado em consideração que a hipótese é semelhante ao caso de quando é
ajuizada ação de petição de herança.
Petição de herança é a ação cabível quando o herdeiro, ainda não reconhecido
e não trazido à partilha, intente, após comprovar a filiação, demandar
reconhecimento de seu direito sucessório para obter restituição de herança ou
parte dela. É espécie de ação pertinente tanto para sucessão legítima quanto
testamentária. Destarte, o interessado teria à mão, modo de reivindicar o
reconhecimento de uma qualidade pessoal e inerente à sua condição de herdeiro.
Neste caso, caberá, é claro, a quem tem interesse, a reserva da herança
até a partilha, nesse caso a mãe do embrião criopreservado, como sua
representante legal. Inegável é o que se disse, pois em havendo um filho
consangüíneo, tal fato configura causa de inserção na ordem de vocação
hereditária como descendente. Dessa forma, solucionados ficariam os problemas
quanto a vontade respeitada do de cujus, bem como os transtornos
psicoemocionais possivelmente enfrentados pela criança, que restariam
afastados.
Além do que se disse, deve-se lembrar que a ação de petição de herança é
imprescritível, porque também é imprescritível a condição de filho e de
herdeiro, logo fácil seria a solução para o herdeiro ainda não concebido. O que
se questiona é se tal postura não estaria indo de encontro com a segurança
jurídica daqueles que já se encontram vivos e concebidos no momento da abertura
da sucessão, para o que se faz necessário observar o que adiante se anota.
4.3.1. SEGURANÇA JURÍDICA E DEIXA TESTAMENTÁRIA
Nessa quadra discutir-se-á a questão da segurança jurídica dos demais
herdeiros, já existentes ou pelo menos já concebidos no momento da abertura da
sucessão, bem como a segurança jurídica da relação como um todo, ponderando sob
que prisma ela deva ser considerada.
A segurança jurídica, nada mais é que a garantia que se confere aos
indivíduos de que no corpo dos textos jurídico, estejam incluídos os princípios
fundamentais conquistados pelas lutas sociais. Dessa forma, significa mais que
a simples certeza e obediência a um conjunto de leis que tipifiquem o que é
permitido ou não. Tal instituto existe, em verdade para que a finalidade maior do
Direito se concretize.
Primeiramente, imperioso o registro de que a questão da segurança
jurídica no processo sucessório é com certeza relativa. Em exemplo ao que se
disse podemos exemplificar com ocaso do falecido que não deixa descendentes.
Sua herança será, em obediência ao que diz o código civil, repartida entre seus
ascendentes e cônjuge. Entretanto, sobrevindo investigação de paternidade post
mortem, e, em sendo esta paternidade confirmada, a vocação se modificará,
deixando à margem os ascendentes e possivelmente o cônjuge, dependendo do
regime jurídico de casamento.
Nesse caso não se questionará o desejo de ter aquele filho, pois o
simples fato desta criança existir já lhe confere o direito de participar da
herança, haja vista ser um herdeiro legítimo. Este filho não será tratado, pela
lei, de forma diferente pelo simples fato de não ter sido planejado.
Não é o que ocorreria, todavia, se a criança tivesse sido gerada
posteriormente ao falecimento do de cujus, ainda que em obediência a uma
vontade sua. Percebe-se que, a confusão é levantada pela própria legislação,
que prevê casos equivalentes de modo desigual. Dessa forma passa-se a
confrontar o art. 1.597, inciso III do Código Civil, que trata da presunção de
filiação no caso de inseminação artificial homóloga realizada após a morte do
genitor com a descrita no artigo 1.798 do mesmo Código, no sentido de que só
tem legitimidade para suceder quem já estava vivo, ou, ao menos, já era
concebido no momento da abertura da sucessão.
Como já debatido, o ordenamento jurídico é uno, porém não é um sistema
fechado. Deve-se, quando da interpretação de uma norma, considerá-la dentro do
corpo normativo maior em que se insere, e não interpretá-la isoladamente, sob
pena de se aplicar a uma dada hipótese, entendimento gramatical e sem
sistematicidade.
Assim, mister se faz analisar as demais fontes do Direito e não somente
as leis. A aplicação dos princípios, costumes e demais fontes é de grande
utilidade para o aplicador. Quanto aos princípios, importante lembrar do princípio
da legalidade, aplicável tanto à administração pública quanto aos particulares.
No primeiro caso, estabelecendo que a administração só pode fazer aquilo
que vier prescrito na lei. Já quanto ao particulares, o princípio em tela
reconhece que estes podem fazer tudo aquilo que a lei não proíba. Em não
existindo lei proibitiva, cristalino é o entendimento que ao particular não é
vedada certa conduta.
Desta feita conclui-se que a ausência de legislação que proíba a
inseminação artificial deixa margem para que a conduta seja realizada. Em
conseqüência não se pode punir aquele que opte por adotar o procedimento,
excluindo os direitos inerentes ao assunto. O filho resultante da inseminação
artificial homóloga post mortem deve ter exatamente os mesmos direitos que são
assegurados ao seu irmão biológico concebido ou nascido antes da morte do pai.
A interpretação é consentânea com os princípios constitucionais da dignidade da
pessoa humana, da igualdade entre os filhos, do planejamento familiar etc.
Complementando o que ora se argumenta, vale lembrar que a própria
Constituição Federal estabelece, em seu art. 5º, inciso XXX, que é garantido,
sem restrições, o direito de herança. Dessa forma interpretar o art. 1.798 do
código Civil restritivamente, vai de encontro mesmo com a Carta Maior.
Pensar dessa forma não ofende a segurança jurídica por se tratar de caso
excepcional. Bastaria, na ocorrência do fato, pensar constitucionalmente, e
estender àquele filho, os direitos dos demais, ponderando tanto o princípio da
dignidade da pessoa humana (para a viúva e o filho concebido via inseminação
artificial post mortem) quando o da segurança jurídica (para os demais filhos).
Como os direitos fundamentais não são absolutos, em muitos casos pode
até mesmo haver uma colisão entre eles. Nesse momento deve-se analisar, qual
das garantias merece maior atenção, e qual merece ser aplicada.
Essa discussão não é nova, e as cortes superiores tem enfrentado
sobremaneira o assunto, tendo se instituindo, hodiernamente, o instituto da
relativização da coisa julgada, pois importante é equilibrar as exigências de
segurança jurídica com os resultados das experiências profissionais.
Assim segurança jurídica quer dizer mais a segurança do ordenamento como
um todo, que a sua aplicação a um grupo de indivíduos com direitos já
protegidos. Com o advento de uma inseminação artificial póstuma ao de cujus,
ninguém perde. Os filhos já havidos não perderão a qualidade de filhos
legítimos nem os direitos inerentes a ela. O falecido verá sua vontade realizada,
o que deve ser observado e obedecido, inclusive, por aqueles que ele já havia
gerado. E o direito também não perde, pois cumprirá sua função precípua: fazer
justiça.
Também sobre a segurança jurídica, caso venha a ser aplicado
analogicamente o conceito de prole eventual, não se pode estipular o prazo
máximo de dois anos conferido àquele instituto, pois não se pode impor um
limite temporal à realização da referida técnica, pois se estaria ferindo os
princípios constitucionais antes defendidos.
Caso contrário, a segurança jurídica restaria afastada, pois se estaria
postergando a vontade do falecido em benefício da vontade de quem sobreviveu a
ele. O patrimônio deve ser distribuído de acordo com a vontade de quem o
conquistou, nesse caso o de cujus, por isso sua manifestação deve ser
obedecida, sob pena de afastar a segurança jurídica conferida a ele.
Não se pode esquecer também que o caso da prole eventual impõe que os
bens sejam deixados em forma de testamento, o que, nesse caso, violaria a
igualdade entre os filhos como adiante se explicará.
Nos termos do art. 1.799, inciso I do CC de 2002 “na sucessão
testamentária, podem ainda ser chamados a suceder os filhos ainda não
concebidos, de pessoas indicadas pelo testados, desde que vivas estas ao
abrir-se a sucessão”. Assim, defende-se que se o testador pode deixar
patrimônio seu para prole eventual de terceiros, também pode deixar para prole
sua.
Entretanto, ao considerar que o filho havido por inseminação artificial
post mortem, só poderá herdar através de testamento, criando-se está,
discriminação vedada pela própria lei. Mais uma vez, invocando o princípio
constitucional da absoluta igualdade entre filhos, não poderá ser feita tal
distinção.
Assim, configura-se em inconstitucionalidade considerar que os filhos
naturais, os adotivos, e até de fecundação in vitro terão direito à sucessão
legítima, enquanto os havidos de inseminação artificial post mortem somente
terão direito à sucessão testamentária.
O que ocorre é que a regra que disciplina a hipótese apenas repetiu o
que prelecionava o Código de 1916, que só beneficiava o concepturo com
testamento porque, naquela época, era impossível imaginar que se poderia gerar
um filho após a morte. Porém, a ciência evoluiu ao ponto de possibilitar a quem
tenha tal vontade, ou a quem, por qualquer outro motivo, tenha nessa
possibilidade a única chance de gerar uma criança, a oportunidade de ver o
desejo concretizado.
Ademais, a própria legislação reconhece os efeitos pessoais da filiação
a este ser. Logo, não há porque diferenciar os iguais pela condição que lhe é
aposta quando do nascimento.
Outro fator que prejudica o herdeiro concebido da forma que se aborda
neste trabalho é o fato de a tradição do testamento não ser amplamente
utilizada no Brasil. Por motivos, inclusive, de cunho cultural, neste país não
se tem o hábito de planejar os termos posteriores a morte, porque se evita
falar sobre ela. O que se evidencia é que assuntos referentes a este fatídico momento
são evitados, o que dificulta sobremaneira seja utilizado a deixa testamentária
para benesse do herdeiro.
Verifica-se, que na legislação o que se encontra é real omissão e por
que não dizer, contradição quando da aplicação dos ralos dispositivos existentes,
quando se fala de direitos sucessórios dos filhos havidos por inseminação
artificial post mortem.
Sendo assim, e aplicando o que diz a Lei de Introdução ao Código Civil
de 2002, deve-se em caso de omissão legislativa, decidir-se segundo os costumes,
e quando da aplicação destes costumes estes devem ser aplicados de forma
integrativa, ou seja, praeter legem.
Pensando desta forma, resguardados estariam os direitos de todos. De
mais a mais, deve-se mensurar que com o que aqui se defende, não está se buscando
prejudicar os demais herdeiros, já que estes continuarão detentores de seus
direitos, mas garantir-se-á, a todos, a reivindicada segurança jurídica.
Ainda nesse diapasão, não se pode esquecer que a segurança jurídica
serve para abarcar a situação como um todo, e que concomitante a sua presença,
devem estar presentes o bom senso e a boa fé entre os sujeitos da relação que
se delineia.
Presentes os princípios que norteiam a aplicação do direito Civil
Brasileiro, tais como a eticidade e socialidade, não há como dizer que esta
seara jurídica estaria sendo mal aplicada. Assim afastada estaria a
individualidade, em benefício da coletividade, e afastada também estaria a
injustiça, em benefício da função social.
Trazendo para o que ora se estuda, tem-se que função social, e ética, do
caso em comento significa proteger direitos de indivíduos que a própria lei
reconhece como detentores. Dizer que um filho é filho, não importa como e
quando foi gerado, e, posteriormente, dizer que um desses filhos não tem direitos
sucessórios é no mínimo controverso, merecendo por isso mesmo, maior atenção do
legislador e maior sensibilidade do aplicador do Direito, que antes de
considerar a legalidade de uma norma deve atentar para o ordenamento na qual
ela está inserida, sob pena de não ser aplicada justiça aos casos concretos.
Dessa forma, para o presente estudo aponta-se como solução o
entendimento da necessidade de uma prestação legislativa correspondente, ou
pelo menos uma interpretação favorável ao indivíduo detentor de vida, que por
ora fica a margem das benesses conferidas pelo Estado Democrático de Direito.
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