As
atenções da comunidade política brasileira ficaram voltadas esta
semana, quase que exclusivamente, para o pronunciamento do voto do
ministro Celso de Melo na Ação Penal 470, vulgarmente conhecida como
“processo do mensalão”. Desta vez, por conta de um compromisso acadêmico
no IV Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito da PUC-Minas campus Serro[1],
não pude assistir à sessão do Supremo Tribunal Federal pela TV. Mas
ouvi todo o longo voto do ministro Celso no caminho de Belo Horizonte ao
Serro. Foi ele transmitido ao vivo pela Rádio CBN. Acho que, nem nos
meus mais recônditos sonhos de jovem jurista, poderia eu imaginar que,
um dia, uma sessão do Supremo Tribunal Federal seria transmitida pelo
rádio, pela TV, pela internet, tudo ao mesmo tempo agora. Mas o foi. A
TV e a internet ainda são mais cativantes para atrair a audiência
porque, além da fala, temos as imagens que geram algum tipo de
“entretenimento”. Mas, no rádio?! Nesse último caso é a fala, e apenas
ela, que conduz o ouvinte. Todo aquele rompante de linguagem empolada
cai nos ouvidos e, no instante seguinte, induz-nos ao sono. Sem embargo,
a sessão “deu no rádio”, como dizia a minha falecida avó materna. E eu a
ouvi. Isso, definitivamente, é um sinal dos tempos. E,
concomitantemente, um sintoma do grau de mobilização que este processo é
capaz de provocar. E toda essa mobilização político-social gera seus
efeitos deletérios. No caso, chega a ser aflitivo — para alguém
determinado a analisar a questão na perspectiva da autonomia do Direito —
o estado de poluição de informações a que o caso está submetido. Há um
caos nesse estranho mundo da opinião jurídica. E vejam: não estou aqui
me referindo aos populares incautos que procuram expressar suas opiniões
sobre o problema. Estou a me referir a uma certa “elite intelectual”
brasileira que opina sobre questões jurídicas como quem vai a um
restaurante e diz no dia seguinte se o prato saboreado estava bom ou
ruim; se o chef conseguiu aproveitar todas as qualidades
naturais dos ingredientes usados na preparação da receita; ou se o vinho
indicado pelo maître harmonizou com o prato degustado.
Geralmente,
cria-se uma oposição entre o “bom” e o “ruim”, sem que isso esteja,
necessariamente, conectado com a melhor resposta jurídica para o
problema. Uma revista, de grande circulação nacional estampou na capa
que o voto do ministro Celso — que desempataria a questão sobre a
possibilidade ou não de interposição dos Embargos Infringentes diante do
direito vigente —, estava diante de um dilema: “tecnicidade versus
impunidade”. Por outro lado, reverberava por todos os lados o eco da
fala do ministro Barroso quando enunciou que, como juiz, não tomava
decisões baseado no “grito das ruas” ou no “clamor popular”. Esse fator
voltou a lançar luz sobre o problema da relação entre Judiciário e
opinião pública. Ao final, no modo como se propagaram as coisas, deu-se a
entender que — aqueles cinco ministros que votaram pela impossibilidade
de interposição dos embargos em face da inadequação e ilegitimidade
diante do direito vigente — não foram “técnicos”. Ao contrário, o que
eles fizeram foi simplesmente jogar a questão para a plateia; decidiram
segundo o clamor das ruas e não segundo o Direito.
A questão que
envolve essa ação penal é muito complexa porque, tudo nela, parece levar
a análise dos problemas jurídicos a uma dimensão do gosto político
professado pelo analista. A oposição entre “tecnicidade” e “impunidade” é
péssima porque dá logo a impressão de que a análise “técnica” ou
estritamente jurídica da questão leva, necessariamente, à possibilidade
de interposição dos embargos e à consequente continuação do processo
para aqueles que se enquadram nas condições regimentais de ajuizamento
da medida. Por outro lado, para afastar o fantasma da impunidade, seria
necessário dar um salto sobre o direito para se fazer justiça.
Do
mesmo modo que toda a retórica levada a cabo pelo ministro Celso para
defender o papel contramajoritário do Poder Judiciário contribuiu para
jogar os votos daqueles que decidiram pela impossibilidade dos embargos
para dentro do grupo dos “seguidores do clamor popular”.
E o que
falar das mais diversas manifestações — pelos mais diferentes meios e
mídias — que repudiavam a aceitação dos embargos afirmando que uma tal
decisão representaria um perigoso precedente para as futuras ações
penais a serem julgadas pela corte. Consequencialismo? Novamente,
estamos fora de um argumento que preserve a autonomia do Direito. Seria
de se perguntar: mas, afinal, a ordem jurídica vigente incorporou ou não
os embargos infringentes do regimento interno do Supremo Tribunal
Federal? Somente se a resposta a esta pergunta for não é que se
justifica o seu afastamento no caso concreto. Do contrário, se a
resposta for no sentido de que eles são parte do direito vigente, então
eles teriam mesmo que ser aplicados, independentemente das consequências
posteriores.
Mas o ministro votou e afirmou a tese da recepção
dos embargos ao Direito vigente. Sem embargo, na hipótese, entendo que o
ministro Celso de Mello, assim como seus cinco colegas que votaram pela
admissão, errou. O decano não errou apenas nesse momento, em que exarou
seu voto tendo como objeto a análise da questão em específico. Errou
antes, quando, já no início do processo, se antecipou para dizer que o
cabimento desse recurso ordinário, previsto no regimento interno da
corte, representava um óbice para a tese da defesa de que o julgamento
dessa ação, diretamente pelo plenário do STF, representaria uma ofensa à
garantia de um segundo julgamento. Na verdade, a posição jurídica do
ministro já havia sido selada neste momento. E já nesse tempo estava
assentada em um equívoco jurídico.
E anote-se: entendo que a
posição definida pelo ministro Celso de Mello não é a que oferece a
melhor interpretação para o Direito vigente não porque tenho eu um
desejo guardado no fundo do meu ser de ver os réus desse processo
apodrecendo na prisão. Ou, ainda, porque, nesse Fla-Flu, faço parte da
torcida que é refratária ao partido político daquele que se apresenta
como “o mentor” de todo o esquema que deu origem à ação penal.
Não
é disso que se trata. Não estou aqui seguindo o “clamor público”. Como
acredito que os ministros que votaram pela impossibilidade dos embargos
também não o fizeram.
Penso que, na hipótese, os embargos
infringentes não foram recepcionados sequer pela Constituição de 1988.
Sei que minha posição, nesse caso, pode causar alguma estranheza, mas,
de todo modo, defendo que o problema aqui posto não se configura apenas
como uma questão de não recepção formal. Trata-se de uma não recepção
material. A Constituição de 1967 e a emenda número 1 de 1969 concediam
“poder normativo” ao Supremo Tribunal Federal para criar normas de
processo que regulamentassem as ações por ele julgadas e os trabalhos da
corte. Como é possível sustentar que, no regime jurídico configurado
pela Constituição de 1988, uma norma de processo — criada pelo STF no
exercício de competência normativa — pode ser com ela compatível? E,
mais do que isso, como é possível justificar que uma tal previsão seria
adequada ao artigo 22, inciso I da Constituição Federal que diz
expressamente que compete à União, portanto ao Congresso Nacional,
legislar sobre processo? Nesse caso, não estamos diante de uma simples
questão de forma porque a distribuição das competências federativas é
elemento essencial para a configuração de nosso federalismo.
Esse
argumento reverbera, em alguma medida, a posição da ministra Cármen
Lúcia quando defendeu a unidade do direito processual no sistema
jurídico pátrio. Ora, foi uma opção do constituinte que o sistema
processual fosse único, para todo o país. Como admitir que ele possa ter
“exclusividades” no âmbito de um único tribunal da federação? Claro que
questões procedimentais podem ser articuladas de forma específica. Mas,
isso não se aplica a normas que prevejam recursos. Bem sei que
regimentos internos preveem recursos. Inclusive no âmbito dos tribunais
dos Estados. Mas, daí a um erro justificar o outro...
Nesse caso,
nem a OEA ou até mesmo o papa Francisco me convenceriam do contrário.
Não existe argumento jurídico que possa superar essa questão: como é
possível um simples regimento interno valer mais do que a Constituição?
Isso
sem falar que a Lei 8.038/1990, quando tratou da ação penal originária
no âmbito do STF e do STJ, silenciou-se sobre a possibilidade dos
embargos infringentes. Nesse sentido, concordo integralmente com a
interpretação oferecida por Lenio Streck aqui mesmo nesta ConJur (clique aqui
para ler) e que foi citada longamente no voto do ministro Gilmar
Mendes. Não é possível dizer que houve um silêncio eloquente do
legislador que deve ser complementado pelo Poder Judiciário. Silêncio,
aqui, implica revogação. A não ser que aceitemos que um recurso pode
existir no STF e não existir no STJ, quebrando a unidade do direito
processual, que é determinação constitucional.
Assim, entendo que a
tese jurídica — técnica — adequada à questão indica a não recepção dos
embargos infringentes à ordem jurídica pós-1988. Não por populismo ou
por horror à impunidade, mas, porque é ela adequada à Constituição e às
leis da República. Isso para qualquer réu de ação penal originário
julgada pelo Supremo Tribunal Federal: seja ele torcedor do Flamengo ou
do Fluminense; do São Paulo ou do Corinthians; do Grêmio ou do Inter; do
Atlético ou do Cruzeiro etc., etc., etc.
A decisão do Supremo
Tribunal, contudo, foi pelo cabimento dos embargos. É errado dizer que
isso representa uma possibilidade de, em algumas hipóteses, levar o
julgamento ao infinito, como disse o colunista da Folha de S.Paulo Vinícius Mota na sua coluna de segunda-feira, dia 16 de setembro.[2] Mas, se não chega a tanto, é preciso dizer que a decisão é ruim, que errou o Supremo neste caso.
A
interpretação do Direito depende de uma suspensão de pre-juízos. Não há
democracia sem autonomia do direito. E isso não é simples “clamor
popular”.