Admissão de Embargos Infringentes pelo STF foi erro
Geralmente,
 cria-se uma oposição entre o “bom” e o “ruim”, sem que isso esteja, 
necessariamente, conectado com a melhor resposta jurídica para o 
problema. Uma revista, de grande circulação nacional estampou na capa 
que o voto do ministro Celso — que desempataria a questão sobre a 
possibilidade ou não de interposição dos Embargos Infringentes diante do
 direito vigente —, estava diante de um dilema: “tecnicidade versus
 impunidade”. Por outro lado, reverberava por todos os lados o eco da 
fala do ministro Barroso quando enunciou que, como juiz, não tomava 
decisões baseado no “grito das ruas” ou no “clamor popular”. Esse fator 
voltou a lançar luz sobre o problema da relação entre Judiciário e 
opinião pública. Ao final, no modo como se propagaram as coisas, deu-se a
 entender que — aqueles cinco ministros que votaram pela impossibilidade
 de interposição dos embargos em face da inadequação e ilegitimidade 
diante do direito vigente — não foram “técnicos”. Ao contrário, o que 
eles fizeram foi simplesmente jogar a questão para a plateia; decidiram 
segundo o clamor das ruas e não segundo o Direito.
A questão que 
envolve essa ação penal é muito complexa porque, tudo nela, parece levar
 a análise dos problemas jurídicos a uma dimensão do gosto político 
professado pelo analista. A oposição entre “tecnicidade” e “impunidade” é
 péssima porque dá logo a impressão de que a análise “técnica” ou 
estritamente jurídica da questão leva, necessariamente, à possibilidade 
de interposição dos embargos e à consequente continuação do processo 
para aqueles que se enquadram nas condições regimentais de ajuizamento 
da medida. Por outro lado, para afastar o fantasma da impunidade, seria 
necessário dar um salto sobre o direito para se fazer justiça.
Do 
mesmo modo que toda a retórica levada a cabo pelo ministro Celso para 
defender o papel contramajoritário do Poder Judiciário contribuiu para 
jogar os votos daqueles que decidiram pela impossibilidade dos embargos 
para dentro do grupo dos “seguidores do clamor popular”.
E o que 
falar das mais diversas manifestações — pelos mais diferentes meios e 
mídias — que repudiavam a aceitação dos embargos afirmando que uma tal 
decisão representaria um perigoso precedente para as futuras ações 
penais a serem julgadas pela corte. Consequencialismo? Novamente, 
estamos fora de um argumento que preserve a autonomia do Direito. Seria 
de se perguntar: mas, afinal, a ordem jurídica vigente incorporou ou não
 os embargos infringentes do regimento interno do Supremo Tribunal 
Federal? Somente se a resposta a esta pergunta for não é que se 
justifica o seu afastamento no caso concreto. Do contrário, se a 
resposta for no sentido de que eles são parte do direito vigente, então 
eles teriam mesmo que ser aplicados, independentemente das consequências
 posteriores.
Mas o ministro votou e afirmou a tese da recepção 
dos embargos ao Direito vigente. Sem embargo, na hipótese, entendo que o
 ministro Celso de Mello, assim como seus cinco colegas que votaram pela
 admissão, errou. O decano não errou apenas nesse momento, em que exarou
 seu voto tendo como objeto a análise da questão em específico. Errou 
antes, quando, já no início do processo, se antecipou para dizer que o 
cabimento desse recurso ordinário, previsto no regimento interno da 
corte, representava um óbice para a tese da defesa de que o julgamento 
dessa ação, diretamente pelo plenário do STF, representaria uma ofensa à
 garantia de um segundo julgamento. Na verdade, a posição jurídica do 
ministro já havia sido selada neste momento. E já nesse tempo estava 
assentada em um equívoco jurídico.
E anote-se: entendo que a 
posição definida pelo ministro Celso de Mello não é a que oferece a 
melhor interpretação para o Direito vigente não porque tenho eu um 
desejo guardado no fundo do meu ser de ver os réus desse processo 
apodrecendo na prisão. Ou, ainda, porque, nesse Fla-Flu, faço parte da 
torcida que é refratária ao partido político daquele que se apresenta 
como “o mentor” de todo o esquema que deu origem à ação penal.
Não
 é disso que se trata. Não estou aqui seguindo o “clamor público”. Como 
acredito que os ministros que votaram pela impossibilidade dos embargos 
também não o fizeram.
Penso que, na hipótese, os embargos 
infringentes não foram recepcionados sequer pela Constituição de 1988. 
Sei que minha posição, nesse caso, pode causar alguma estranheza, mas, 
de todo modo, defendo que o problema aqui posto não se configura apenas 
como uma questão de não recepção formal. Trata-se de uma não recepção 
material. A Constituição de 1967 e a emenda número 1 de 1969 concediam 
“poder normativo” ao Supremo Tribunal Federal para criar normas de 
processo que regulamentassem as ações por ele julgadas e os trabalhos da
 corte. Como é possível sustentar que, no regime jurídico configurado 
pela Constituição de 1988, uma norma de processo — criada pelo STF no 
exercício de competência normativa — pode ser com ela compatível? E, 
mais do que isso, como é possível justificar que uma tal previsão seria 
adequada ao artigo 22, inciso I da Constituição Federal que diz 
expressamente que compete à União, portanto ao Congresso Nacional, 
legislar sobre processo? Nesse caso, não estamos diante de uma simples 
questão de forma porque a distribuição das competências federativas é 
elemento essencial para a configuração de nosso federalismo.
Esse 
argumento reverbera, em alguma medida, a posição da ministra Cármen 
Lúcia quando defendeu a unidade do direito processual no sistema 
jurídico pátrio. Ora, foi uma opção do constituinte que o sistema 
processual fosse único, para todo o país. Como admitir que ele possa ter
 “exclusividades” no âmbito de um único tribunal da federação? Claro que
 questões procedimentais podem ser articuladas de forma específica. Mas,
 isso não se aplica a normas que prevejam recursos. Bem sei que 
regimentos internos preveem recursos. Inclusive no âmbito dos tribunais 
dos Estados. Mas, daí a um erro justificar o outro...
Nesse caso, 
nem a OEA ou até mesmo o papa Francisco me convenceriam do contrário. 
Não existe argumento jurídico que possa superar essa questão: como é 
possível um simples regimento interno valer mais do que a Constituição?
Isso
 sem falar que a Lei 8.038/1990, quando tratou da ação penal originária 
no âmbito do STF e do STJ, silenciou-se sobre a possibilidade dos 
embargos infringentes. Nesse sentido, concordo integralmente com a 
interpretação oferecida por Lenio Streck aqui mesmo nesta ConJur (clique aqui
 para ler) e que foi citada longamente no voto do ministro Gilmar 
Mendes. Não é possível dizer que houve um silêncio eloquente do 
legislador que deve ser complementado pelo Poder Judiciário. Silêncio, 
aqui, implica revogação. A não ser que aceitemos que um recurso pode 
existir no STF e não existir no STJ, quebrando a unidade do direito 
processual, que é determinação constitucional.
Assim, entendo que a
 tese jurídica — técnica — adequada à questão indica a não recepção dos 
embargos infringentes à ordem jurídica pós-1988. Não por populismo ou 
por horror à impunidade, mas, porque é ela adequada à Constituição e às 
leis da República. Isso para qualquer réu de ação penal originário 
julgada pelo Supremo Tribunal Federal: seja ele torcedor do Flamengo ou 
do Fluminense; do São Paulo ou do Corinthians; do Grêmio ou do Inter; do
 Atlético ou do Cruzeiro etc., etc., etc.
A decisão do Supremo 
Tribunal, contudo, foi pelo cabimento dos embargos. É errado dizer que 
isso representa uma possibilidade de, em algumas hipóteses, levar o 
julgamento ao infinito, como disse o colunista da Folha de S.Paulo Vinícius Mota na sua coluna de segunda-feira, dia 16 de setembro.[2] Mas, se não chega a tanto, é preciso dizer que a decisão é ruim, que errou o Supremo neste caso.
A
 interpretação do Direito depende de uma suspensão de pre-juízos. Não há
 democracia sem autonomia do direito. E isso não é simples “clamor 
popular”.
Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 21 de setembro de 2013
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário