Mulheres: de vítimas a algozes, o que a mídia tem a ver com isso?
Pesquisa do Ipea mostra naturalização da opressão de gênero e traz à tona violências sofridas em nossos cotidianos. Uma situação que tem tudo a ver com a mídia.
Publicado por Nana Morais - 1 dia atrás 
     
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Integrantes do Intervozes se somam à mobilização #EuNãoMereçoSerEstuprada.
Foto: Jacson Segundo/Intervozes
O
 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou, no dia 27 de 
março, a pesquisa “Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS)”, 
que revela o entendimento de brasileiros e brasileiras sobre a violência
 contra a mulher. 
De acordo com o estudo, 58% dos quase 4 mil 
entrevistados responderam que “se as mulheres soubessem se comportar, 
haveria menos estupros”. Já 82% disseram que “em briga de marido e 
mulher não se mete a colher”.
A pesquisa comprovou questões 
latentes do dia a dia dos brasileiros e das brasileiras. 
Feita no meio 
do ano passado, não poderia ter sido divulgada em momento tão oportuno. 
Na semana passada, notícias alertaram para homens presos em metrôs de 
grandes cidades brasileiras por estarem “encoxando” mulheres nos 
transportes públicos. 
Desde adolescente, sei e senti na pelé o horror do
 ambiente machista e opressor que se tornou o transporte público. 
Seja 
aqui ou na Índia, mulheres foram e continuam sendo estupradas nos 
coletivos, não podem andar sozinhas à noite, não podem, não podem e não 
podem. Somos socializadas na negação das nossas vontades e da nossa 
autonomia. Com medo de um imaginário social e de uma violência física e 
simbólica.
Uma pequena amostra do quão esta pesquisa do IPEA é um
 claro reflexo do pensamento majoritário da sociedade brasileira me 
ocorreu também esta semana. Estava em um congresso acadêmico quando fui 
abordada por uma professora que se revoltara ao ver algumas das 
estudantes voluntárias do congresso acuadas atrás de uma bancada e 
transtornadas pelos comentários da pessoa que as havia mandado para 
aquele lugar. 
Eram universitárias de vinte e poucos anos que estavam no 
congresso usando “shorts” e que, por isso, “não poderiam ficar 
circulando” pelas áreas do evento “para não provocar os professores 
estrangeiros”. E, no caso, quem deveria se esconder? As meninas, 
“lógico”, afinal elas estavam “provocando” os estrangeiros com suas 
roupas.
Aquele relato me deixou revoltada e, no dia seguinte, 
acabei lendo a pesquisa do IPEA. Pela primeira vez, concordei com a 
frase: “imagina na Copa!”.  
Tive um medo tremendo de como as mulheres 
brasileiras, já culpabilizadas por tudo que fazem contra elas, podem ser
 mais uma vez consideradas “algozes” das violências que sofrem. “Mas o 
que a Copa tem a ver com isso?”, devem pensar os mais inocentes. 
Respondo: tudo! Infelizmente, a imagem da mulher brasileira foi 
historicamente ostentada no exterior como objeto de desejo sexual, 
inclusive por campanhas institucionais que apresentavam mulatas seminuas
 e faziam convites ao turismo sexual. Esse imaginário, sabemos, não se 
desfaz da noite para o dia e, muito menos, sem uma imprensa e um poder 
público imbuídos da responsabilidade de combater o machismo em todas as 
suas formas.
Há muito pouco tempo, alguns aspectos da violência de gênero vêm se tornando alvo de políticas públicas importantes como a Lei Maria da Penha,
 mas precisamos ainda da revolução imagética e simbólica do lugar e da 
autonomia da mulher. Para isso, dependemos sim de uma mídia responsável,
 não de uma imprensa que não só não se posiciona contra o machismo e 
todas as formas de violência e opressão, como também não se sente 
responsável pelo combate a todo e qualquer tipo de violação de direitos.
Ainda
 hoje, assistimos, cotidianamente, a mulher ser objetificada pela 
publicidade, ser estereotipada nas novelas, nas bancadas dos 
telejornais, nas previsões do tempo, nos programas de humor. Vemos 
também as dores de mulheres estupradas, agredidas, violentadas serem 
expostas e usadas para alavancar audiência. O Big Brother Brasil, por 
exemplo, além de objetificar e estereotipar as mulheres, foi capaz de 
negar o abuso sofrido por uma participante alcoolizada. Na ocasião, 
também veio à tona a responsabilização da mulher, que “bebeu mais do que
 deveria”. O apresentador Pedro Bial e a própria rede de TV negaram a 
gravidade do fato, que teve apenas na internet um espaço para amplo 
debate.
Esses veículos são os mesmos que negam a existência do 
racismo no Brasil e insistem em defender que o machismo também é criação
 das “feminazes”, do PT, do governo. Resta questionar: a quem interessa 
negar a existência do machismo? De certo, aos que acham que podem 
comparar a culpabilidade de um estupro a de um roubo, como fez o 
blogueiro da Revista Veja, Felipe Moura Brasil. Pasmem, mas, nas 
palavras do blogueiro:
“(...) é perfeitamente compreensível o raciocínio de que se elas [as mulheres brasileiras] não usassem roupas tão provocantes atrairiam menos a atenção dos estupradores, assim como, se os homens não passassem de Rolex ou de Ferrari em áreas perigosas, atrairiam menos a atenção de assaltantes. E nada disso seria culpá-los dos crimes que os demais cometeram”.
As
 contradições das palavras de Felipe se desenrolam por todo o texto, que
 tenta encontrar nas intenções políticas do governo e nas mulheres a 
razão de ser do resultado da pesquisa do Ipea. 
Chega a ser irônico que a
 mesma conclusão não seja usada para dizer que o homem que estava na sua
 Ferrari ou com o seu Rolex é culpado por ter sido roubado, lógico! 
Por 
um acaso, quando Luciano Huck teve seu relógio roubado, alguém na 
imprensa o culpou? 
Nunca vi um homem ser culpado por ser roubado, mas o 
blogueiro da revista de maior circulação do país diz ser perfeitamente 
compreensível o raciocínio de que as roupas provocantes atraem a atenção
 dos estupradores. Lamentável.
Essas e outras questões mostram, 
tanto de forma escancarada como de forma sutil, que o machismo no Brasil
 ainda é muito forte, vai além das diferenças salarias entre homens e 
mulheres e da quádrupla jornada feminina (trabalho – casa – marido – 
filhos). O machismo no Brasil é sim um machismo medieval, um machismo 
que além de violar os direitos e violentar as mulheres, faz com que 
recaia sobre elas toda a culpa e responsabilidade pelos reflexos desse 
machismo, que acaba sendo internalizado inclusive por muitas mulheres. 
Afinal, o machismo não escolhe gênero e tem inumeráveis meios de 
propagação, dentre eles a mídia, que se mostra, em sua maioria, 
conservadora e preconceituosa, superficial e espetacularizada.
Por
 outro lado, há de se registrar e valorizar os meios que insurgem no 
combate à violência contra a mulher, mesmo que em menor medida e ainda 
de forma tímida. Posso citar aqui dois bons exemplos que, nesses últimos
 dias, encheram-me de esperança: o Diário de Pernambuco e a Empresa 
Brasil de Comunicação. Ambos publicaram em suas páginas eletrônicas, e o
 Diário de Pernambuco também na sua edição imprensa, declarações de 
funcionárias e funcionários que repudiavam os resultados desta pesquisa,
 ao invés de utilizar oratórias demagogas para negar o óbvio e culpar, 
mais uma vez, nós, mulheres.
E mesmo a polêmica pesquisa do Ipea 
nos mostra que nem tudo é retrocesso. 
Rafael Osorio, diretor de Estudos e
 Políticas Sociais do instituto, explicou que outras formas de violência
 estão sendo percebidas pela população. Segundo Osório, “Existe 
atualmente uma rejeição da violência física e simbólica – xingamentos, 
tortura psicológica”. Quem sabe com uma impressa mais preocupada e 
responsável pelo fim das desigualdades e que compreenda seu papel nos 
processos sociais mais complexos e duradores, possamos sonhar com dias 
melhores, com a autonomia e ações simples como escolher a roupa que se 
quer vestir e não ser julgada ou estuprada por isso.
*Mariana Martins é jornalista, doutora em Comunicação Social pela UnB e integrante do Intervozes.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/mulheres-de-vitimasaalgozesoqueamidia-temave...
 
 
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