As consequências jurídicas da má prestação de serviço pelas companhias aéreas
O DIREITO DE REPARAÇÃO EM CASOS DE ATRASO DE VOO NACIONAL (COM OU SEM EXTRAVIO DE BAGAGEM): REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA E PANORAMA JURISPRUDENCIAL
I – Visão geral sobre a regulamentação do transporte aéreo no Direito Brasileiro
A utilização do transporte aéreo como meio de locomoção faz parte da realidade de milhares de pessoas. Com os anos, a possibilidade de comprar uma passagem de avião e realizar uma viagem a lazer ou a trabalho foi tornando-se mais concreta. Todavia, apesar de todos os benefícios intrínsecos a esta realidade, sabemos que o consumidor deste serviço não está livre de encontrar percalços com atrasos de voos, extravio de bagagem, negativa de direitos consumeristas, dentre outros.
Não por acaso, é grande o número de ações indenizatórias propostas por passageiros contra companhias aéreas para perseguir a reparação dos danos decorrentes destas situações.
A análise de julgados sobre o tema revela que, muitas vezes, as lides oriundas destes contextos são resolvidas com a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ( CDC). De toda forma, é importante ter ciência de que esta não é a única lei passível de incidência sobre este tipo de demanda, pelo que, para entender o Direito aplicável ao caso concreto, é preciso, antes de tudo, delimitar o contexto fático da lide.
Tanto é assim que o “simples” fato de se tratar o caso de voo internacional faz com que eventual pedido de reparação por danos materiais em razão de extravio de bagagem seja tutelado por norma distinta. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em julgamento com repercussão geral, no ano de 2017, que, diante deste contexto fático, não haverá a incidência do Código de Defesa do Consumidor no que se refere à reparação dos danos materiais. Veja-se:
Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Extravio de bagagem. Dano material. Limitação. Antinomia. Convenção de Varsóvia. Código de Defesa do Consumidor. 3. Julgamento de mérito. É aplicável o limite indenizatório estabelecido na Convenção de Varsóvia e demais acordos internacionais subscritos pelo Brasil, em relação às condenações por dano material decorrente de extravio de bagagem, em voos internacionais. 5. Repercussão geral. Tema 210. Fixação da tese: "Nos termos do art. 178 da Constituição da Republica, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor". 6. Caso concreto. Acórdão que aplicou o Código de Defesa do Consumidor. Indenização superior ao limite previsto no art. 22 da Convenção de Varsóvia, com as modificações efetuadas pelos acordos internacionais posteriores. Decisão recorrida reformada, para reduzir o valor da condenação por danos materiais, limitando-o ao patamar estabelecido na legislação internacional. 7. Recurso a que se dá provimento. ( RE 636331, Relator (a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-257 DIVULG 10-11-2017 PUBLIC 13-11-2017)
( STF - RE: 636331 RJ - RIO DE JANEIRO, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 25/05/2017, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-257 13-11-2017 )
A principal consequência deste entendimento é que, no que se refere aos danos materiais, os passageiros de voos internacionais terão o direito de reparação regulamentado pelos limites previstos no art. 22 da Convenção de Varsóvia. O mesmo artigo, por sua vez, prevê a possibilidade destes limites serem afastados se o passageiro fizer a “declaração especial” de valor do bem material transportado, quando, em caso de extravio, terá direito à reparação do valor declarado – e, portanto, possivelmente, reparação integral. Segue o teor da norma:
Artigo 22
(1) No transporte de pessoas, limita-se a responsabilidade do transportador, á importancia de cento e vinte e cinco, mil francos, por passageiro. Se a indemnização, de conformidade com a lei do tribunal que conhecer da questão, puder ser arbitrada em constituição de renda, não poderá o respectivo capital exceder aquelle limite. Entretanto, por accordo especial com o transportador, poderá o viajante fixar em mais o limite de responsabilidade.
(2) No transporte de mercadorias, ou de bagagem despachada, limita-se a responsabilidade do transportador à quantia de duzentos e cincoenta francos por kilogramma, salvo declaração especial de "interesse na entrega", feita pelo expedidor no momento de confiar ao transportador os volumes, e mediante o pagamento de uma taxa supplementar eventual. Neste caso, fica o transportador obrigado a pagar até a importancia da quantia declarada, salvo se provar ser esta superior ao interesse real que o expedidor tinha entrega.
(3) Quanto aos objectos que o viajante conserve sob os guarda, limita-se a cinco mil francos por viajante a responsabilidade do transportador.
(4) As quantias acima indicadas consideram-se referentes ao franco francez, constituido de sessenta e cinco e meio milligrammas do ouro, ao titulo de novecentos millesimos de mental fino. Ellas se poderão converter, em numeros redondos na moeda nacional de cada, paiz.
A norma internacional regulamenta o que a jurisprudência e a doutrina chamam de indenização tarifada.
Interpretando o art. 22 da Convenção de Varsóvia, o julgado abaixo, oriundo do STJ, bem explica a principiologia da indenização tarifada e algumas especificidades previstas no diploma internacional:
O art. 22, alínea 3, da Convenção de Montreal estabelece que, no transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago quantia suplementar, se for cabível. Com efeito, o Diploma transnacional não impõe uma forçosa tarifação, mas faculta ao expedidor da mercadoria que se submeta a ela, caso não opte por fazer declaração especial - o que envolve, em regra, pagamento de quantia suplementar. 4. As limitações e tarifações de indenização estabelecidas pela Convenção Internacional estão ancoradas em justificativas relevantes, como: a) indispensabilidade de contratação de seguro, que seria inviabilizada pela inexistência de teto; b) compensação entre, de um lado, a limitação e, do outro, o agravamento do regime de responsabilização (inversão do ônus da prova de culpa ou mesmo imputação objetiva); c) unificação do direito, quanto aos valores indenizatórios pagos. 5. O art. 248 do Código Brasileiro de Aeronáutica tem disposição harmoniosa com o art. 22, alínea 5, da Convenção de Montreal, que estabelece que a limitação indenizatória não se aplicará se for provado que o dano é resultado de uma ação ou omissão do transportador ou de seus prepostos, com intenção de causar dano, ou de forma temerária e sabendo que provavelmente causaria dano, sempre que, no caso de uma ação ou omissão de preposto, se prove também que este atuava no exercício de suas funções. 6. O extravio da carga é, em todas as hipóteses, o próprio fato gerador da obrigação de indenizar do transportador, não se podendo reconhecer que, sem demonstração de dolo ou culpa grave do transportador ou de seus prepostos, possa ser afastada a aplicação da fórmula convencional, para o cálculo do montante indenizatório. 7. Recurso especial não provido. [1]
Veja-se que, para além do caso de existência da “declaração especial” do valor do bem transportado, a limitação da indenização tarifada também poderá ser afastada no caso de prova sobre a existência de dolo ou culpa grave da transportadora ou de seu preposto quando da realização do serviço de transporte.
Faz mister relembrar, contudo, que a limitação da norma internacional alcança – apenas e tão somente – a reparação dos danos materiais, sendo o eventual pedido de indenização por danos morais em razão de extravio de bagagem ou atraso em voo internacional regulamentado pelo Código de Defesa do Consumidor, cuja ratio é a da reparação integral.
A bem da verdade, apesar de suas peculiaridades, a principal diferença entre a regulamentação da Convenção de Varsóvia e das leis especiais análogas para o Código de Defesa do Consumidor é que o segundo tem como regra geral a reparação integral dos danos devidamente comprovados pelo postulante. Enquanto isso, no caso da indenização tarifada, a regra geral é a aplicação dos limites previstos no art. 22 da norma internacional.
Em suma, pode-se dizer o seguinte sobre a indenização tarifada:
Antes da fixação do entendimento apresentado pelo STF em 2017, a controvérsia sobre a aplicação da lei nacional ou internacional diante deste contexto fático era objeto de divergências no cenário jurisprudencial.
Com efeito, o STJ tinha jurisprudência majoritária em sentido contrário à tese fixada em sede de repercussão geral, isto é, a Corte Superior decidia pela aplicação da lei consumerista na tutela dos danos materiais ocorridos em voo internacional. O entendimento, contudo, foi totalmente superado com a publicação do precedente qualificado em 2017.
Hoje, o STJ decide pela aplicação do diploma internacional nos casos de danos materiais decorrentes de voo internacional, em conformidade ao que foi assentado pelo STF.
A título de exemplo da aplicação de toda esta sistematização normativa, faz mister conferir o caso abaixo julgado recentemente pelo STJ, em 2020, no qual se decidiu pela (i) incidência do instituto da limitação tarifada em caso de extravio de bagagem em voo internacional; e, ato contínuo, pelo (ii) o afastamento de sua regra geral (limite de indenização) em razão de o expedidor do serviço ter feito a declaração especial do valor do objeto transportado, in verbis:
(...) Conforme entendimento desta Corte Superior, o art. 22, alínea 3, da Convenção de Montreal estabelece que, no transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago quantia suplementar, se for cabível. Com efeito, o Diploma transnacional não impõe uma forçosa tarifação, mas faculta ao expedidor da mercadoria que se submeta a ela, caso não opte por fazer declaração especial - o que envolve, em regra, pagamento de quantia suplementar. Precedentes. 2. Na hipótese vertente, o Tribunal de origem, amparado nos elementos fático-probatórios dos autos, concluiu que: "No caso dos autos, o valor das mercadorias avariadas foi declarado, pois constava da fatura comercial mencionada no conhecimento de transporte. Também restou demonstrada a reparação dos danos sofridos pela segurada e a consequente sub-rogação da apelada no direito dela.”(...). [2]
Por fim, cumpre ressaltar que, a despeito de muitos julgados do STJ, publicados antes de 2017, estarem superados no que se refere à aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos pedidos indenizatórios decorrentes de danos materiais em voo internacional, o seu estudo ainda traz grandes aprendizados sobre as legislações aplicáveis às lides que envolvem pedidos de reparação de danos em razão da má prestação de serviços no transporte aéreo. Alguns destes ensinamentos são:
- O Código Brasileiro de Aeronáutica, enquanto lei especial, também regulamenta a questão da reparação por danos materiais decorrente do extravio de bagagem trazendo a ratio da indenização tarifada, à semelhança das disposições da Convenção de Varsóvia.
No que tange esta legislação especial, é importante pontuar o entendimento do STJ no sentido de que “o tratamento especial e protetivo então dispensado pela Convenção de Varsóvia e pelo Código Brasileiro de Aeronáutica ao transporte aéreo, no tocante à responsabilização civil, devia-se ao risco da aviação, relacionado este à ocorrência de acidentes aéreos. Em absoluto descompasso com a finalidade da norma (ultrapassada, em si, como anotado), permitir que o tratamento benéfico se dê, inclusive, em circunstâncias em que o defeito na prestação do serviço em nada se relacione ao risco da aviação em si” [3]. No caso do julgado, a premissa sobre a não aplicação do Código Brasileiro de Aeronáutica foi reforçada pelo fato de que o extravio de bagagem ocorreu já no destino, “totalmente desconectado, portanto, do risco da aviação em si”. De certo, o chamado “risco do ar”, em regra, não tem presença associada aos casos de extravio de bagagem, mas sim às lides indenizatórias que visam a reparação de danos suportados por passageiros e/ou familiares em decorrência de acidentes aéreos;
- O julgado em comento, de Relatoria do Min. Marco Aurélio Belizze também interpreta a aplicação do art. 750 do Código Civil de 2002 (CC/02), enquanto lei subsidiária, ao contexto de extravio de bagagem em razão de má prestação do serviço de transporte aéreo. Cuida-se de disposição legal que regulamenta o contrato de transporte, dispondo o seguinte:
CC/02, Art. 750: A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado.
Veja-se que a previsão também está em consonância com a ideia de reparação integral do valor declarado pelo contratante e, portanto, conhecido pelo transportador. A ratio assemelha-se a ideia veiculada na Convenção de Varsóvia e no Código Brasileiro de Aeronáutica sobre a possibilidade de pagamento integral dos danos quando verificada a condicionante de “valor constante do conhecimento” pelo transportador. Destarte, como assentado pelo STJ, “o art. 750 do Código Civil não encerra, em si, uma exceção ao princípio da indenizabilidade irrestrita. O preceito legal dispõe que o transportador se responsabilizará pelos valores constantes no conhecimento de transporte. Ou seja, pelos valores das mercadorias previamente declaradas pelo contratante ao transportador” [4];
O que se infere é que a legislação especial ( Código Brasileiro de Aeronáutica) e a legislação subsidiária sobre transporte (art. 750 do Código Civil) regulamentam as hipóteses em que não é verificada a relação de consumo entre contratante do transporte e prestador do serviço de transportes. Isso porque, diante da configuração da relação consumerista, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor e, portanto, a regra geral de indenização integral dos danos materiais no caso de voos nacionais [5].
Quanto a danos materiais em caso de voos internacionais, o Código de Defesa do Consumidor só será aplicado na tutela de danos morais [6], eis que, conforme RE n.636.331/RJ, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, os danos materiais são apreciados conforme o art. 22 da Convenção de Varsóvia [7].
A conclusão sobre o cenário da legislação em comento é apresentada no quadro abaixo:
II – O direito de reparação no caso de atraso de voo nacional com extravio de bagagem: a regulamentação dos danos morais e danos materiais.
Uma vez assentadas as premissas gerais sobre a legislação aplicável a este tipo de demanda indenizatória, importa analisar a situação fática mais corriqueira no cenário jurisprudencial nacional: os pedidos de indenização por danos morais em razão de atraso/cancelamento de voo nacional e os pedidos de indenização por danos materiais em decorrência de extravio de bagagem nestes voos.
Tratando-se de voo nacional, o que determinará a lei aplicável ao caso é a existência ou não da relação de consumo entre o expedidor do serviço de transporte e a empresa transportadora. Na relação jurídica oriunda da compra de um bilhete aéreo, a relação de consumo é presumida, na medida em que as companhias aéreas figuram como fornecedoras do serviço e o passageiro como um consumidor final, nos termos dos artigos 2º e 3º do CDC.
E, à luz do diploma consumerista, a regra geral da responsabilidade civil é a responsabilização objetiva dos fornecedores e a reparação integral dos danos apontados e comprovados pelo consumidor vítima da má prestação de serviços. Neste sentido, importa conferir o art. 14 do CDC, in verbis:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
§ 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.”
O que se infere da norma, portanto, é que o prestador do serviço de transporte aéreo:
- Responde, objetivamente, pelos danos decorrentes dos defeitos verificados na prestação do serviço contratado;
- Terá o dever de indenizar o consumidor prejudicado tanto pelos defeitos relativos à prestação do serviço, quanto pela falta e/ou insuficiência da informação disponibilizada durante a realização do serviço;
- Terá responsabilidade pela reparação integral dos danos suportados pelo consumidor, a não ser que comprove a ocorrência de alguma excludente de responsabilidade (culpa exclusiva do consumidor, caso fortuito e culpa de terceiro).
Dito isso, é importante entender o que pode configurar uma má prestação de serviços no contexto do transporte aéreo (o que configura o ato ilícito indenizável neste cenário) e, para tanto, é indispensável ter ciência sobre as normas regulamentadoras da Agencia Nacional de Aviacao Civil ( ANAC).
Com efeito, o conhecimento sobre as diretrizes dadas pela agência reguladora por meio da sua Resolução n. 400/2016 é imprescindível para orientar o consumidor do serviço de transporte aéreo sobre seus direitos e, por conseguinte, sobre a possibilidade de perseguir a reparação de danos oriundos pelo não cumprimento dos deveres das companhias aéreas.
Em resumo, para os casos de atraso de voo e de extravio de bagagem, as principais normas trazidas pela Resolução n. 400/2016 da ANAC podem ser pontuadas nos seguintes termos:
- No caso de atraso por mais de 04 horas, cancelamento ou interrupção do serviço:
- O consumidor tem direito a ser imediatamente informado sobre a situação e o motivo causador da mesma (conforme art. 20 da Res. 400 /ANAC);
- O transportador deverá oferecer alternativas de reembolso, reacomodação e/ou execução por outra modalidade de transporte (conforme art. 21 da Res. 400/2016 /ANAC);
- O transportador deverá oferecer assistência material gratuita ao passageiro conforme o tempo de espera em casos de atraso, a saber: “I - superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação; II - superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e III - superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta.” (conforme art. 26 da Res. 400/2016 /ANAC);
- A reacomodação também será gratuita, em voo próprio ou de terceiros, conforme data e conveniência dos passageiros (conforme art. 28 da Res. 400/2016 /ANAC);
- O reembolso deverá ser oferecido no prazo de 07 dias da solicitação do passageiro, devendo ser integral se solicitado no aeroporto de origem, de escala ou conexão, e proporcional ao trecho não utilizado no caso de deslocamento parcial do passageiro (conforme art. 30 da Res 400/2016 /ANAC);
- No caso de atraso extravio de bagagem:
- O prestador deverá restituir a bagagem no local indicado pelo passageiro em até 07 dias do protesto nos casos de voos domésticos (conforme art. 32 da Res. 400/2016 /ANAC);
- O prestador deverá indenizar o passageiro no caso de a bagagem não ser localizada conforme os prazos do caput do art. 32 da Res. 400/2016 /ANAC;
- No caso de constatação de avaria na bagagem, o prestador, quando possível, deverá realizar a reparação do defeito, a substituição da bagagem por outra equivalente e/ou indenizar o passageiro em caso de violação (conforme art. 32, § 5º da Res. 400/2016 /ANAC);
- O prestador deverá ressarcir as despesas do passageiro que teve sua bagagem extraviada fora de seu domicilio (conforme art. 33 da Res. 400/2016 /ANAC);
Isso posto, o que se conclui é que a não observância destas normas na execução do serviço de transporte aéreo permite a configuração do defeito que autoriza o consumidor a perseguir a tutela judicial dos danos por ele suportados, independentemente da comprovação de culpa da companhia aérea. Destarte, as diretrizes da Resolução 400/2016 da ANAC são utilizadas como balizas no juízo de valor feito pelo Poder Judiciário no julgamento destes tipos de caso. Veja-se:
Verifico da análise dos autos que o atraso foi de mais de 05 horas, ou seja, acima dos padrões regulados pela ANAC. Decerto, Agência Nacional de Viação Civil através da Resolução nº. 400/2016 estabeleceu os deveres das companhias aéreas em razão do atraso e/ou cancelamento do voo:
Art. 21. O transportador deverá oferecer as alternativas de reacomodação, reembolso e execução do serviço por outra modalidade de transporte, devendo a escolha ser do passageiro, nos seguintes casos: I -atraso de voo por mais de quatro horas em relação ao horário originalmente contratado;II- cancelamento de voo ou interrupção do serviço; III- preterição de passageiro; e IV- perda de voo subsequente pelo passageiro, nos voos com conexão, inclusive nos casos de troca de aeroportos, quando a causa da perda for do transportador. Parágrafo único. As alternativas previstas no caput deste artigo deverão ser imediatamente oferecidas aos passageiros quando o transportador dispuser antecipadamente da informação de que o voo atrasará mais de 4 (quatro) horas em relação ao horário originalmente contratado.
8. A acionada contesta a demanda de forma genérica, alegando que a responsabilidade seria dos controladores de voo. Ademais, tampouco demonstrou a recorrente os motivos pelos quais não houve a necessária diligência na disponibilização da viagem conforme contratado ou mesmo que tomou todas as medidas para minorar os transtornos ocasionados a parte autora, não se desincumbindo do ônus da prova, na forma como lhe competia por força do art. 373, II, do NCPC. 9. Desta feita, ficou demonstrada a má prestação do serviço, bem como o dano moral decorrente, uma vez que a conduta perpetrada pela acionada desbordou os limites do mero aborrecimento. (...) [8]
Ademais, a despeito de a Resolução 400 da ANAC ter sido publicada em 2016 – revogando a Resolução n. 141 que dispunha sobre o mesmo objeto e foi publicada em 2010 –, os julgados proferidos em momento anterior às normativas da agência reguladora já traziam a ratio essendi destas normas. A leitura do voto condutor do Min. Aldir Passarinho Junior em acórdão publicado em 2003 revela um juízo de valor que, à exemplo da normativa da ANAC, pondera entre (i) a necessidade de existir certa tolerância do consumidor diante de um atraso aéreo; e (ii) o dever da companhia de transporte de prestar informações e auxílio ao passageiro prejudicado, in verbis:
Entendo que pelas características do transporte aéreo, notadamente o de passageiros, que envolve regras rígidas de segurança envolvendo a aeronave, condições climáticas, aeroportos e a operação como um todo, dependente de toda uma infraestrutura que extrapola, visivelmente, o próprio âmbito da atividade-fim prestada pela companhia, merece ele algum tempero no que concerne ao atraso.
Exigir-se pontualidade na aviação é desconhecer, por completo, essas circunstâncias, muito próprias, do transporte aéreo, que detém, de outro lado, desempenho bastante satisfatório no que tange à segurança e ao tratamento dispensado aos passageiros, no geral. A própria substituição de aeronave, em caso de defeito, não é simples nem imediata, pela inexistência de equipamento reserva, já que a imobilidade de um avião, dado o seu alto custo, não comporta tal procedimento.
De outra parte, quando se verifica o atraso, o passageiro dispõe de instalações cômodas para aguardar o vôo, tanto no aeroporto, como em hotéis próximos, disponibilizados pelas empresas aéreas, se assim o desejar o cliente, e transporte por táxi. Assim, tenho que um atraso, ainda que por algumas horas, não gera direito a indenização por dano moral, sob pena de sua banalização, já que impossível considerar-se como dor, sofrimento, desespero ou grave angústia o sentimento por que passa o passageiro em tal situação, minimizada pelas atenuantes acima descritas e em favor da segurança, inclusive da população em terra.
No caso dos autos, essa é exatamente a situação, porquanto a espera se deu no aeroporto de escala – Guarulhos – inquestionavelmente o maior e um dos mais confortáveis do país, dotado de todo um sistema de segurança, razoável entretenimento, opções de alimentação e conforto, a afastar, data maxima vênia, a possibilidade de lesão moral pela espera, ainda que incômoda. Não há que se confundir, absolutamente, percalços, dissabores e contratempos, com dor, sofrimento ou angústia a abalar, seriamente, a pessoa, a ponto de justificar indenização específica a respeito. [9]
No mesmo diapasão, acórdãos recentes, pertinentes ao contexto da pandemia da Covid-19, revelam que o defeito da prestação do serviço de transporte não necessariamente é associado ao atraso do voo em si, mas à falta de prestação da assistência à vítima – o que, cumpre ressaltar, viola frontalmente as previsões da ANAC que exigem a disponibilização de imediata de informações ao passageiro, bem como a sua assistência material e sua realocação em voos seguintes. O julgado abaixo, oriundo da Turma Recursal do TJBA, deixa esta situação bastante ilustrativa:
RECURSO INOMINADO. CONDIÇÕES DE ADMISSIBILIDADE PREENCHIDAS. TRANSPORTE AÉREO. AQUISIÇÃO DE PASSAGEM AÉREA PARA VOO NACIONAL. CANCELAMENTO DO VOO PARA O TRECHO PALMAS-GOIANIA-PETROLINA, EM RAZÃO DA PANDEMIA DO COVID-19. EMBARQUE REALIZADO COM ATRASO DEMASIADO, FAZENDO COM QUE AS AUTORAS CHEGASSEM AO SEU DESTINO CERCA DE 31 HORAS DEPOIS DO HORÁRIO PREVISTO. AS AUTORAS QUESTIONAM A FALTA DE ASSISTÊNCIA DA EMPRESA ACIONADA APÓS O CANCELAMENTO/ALTERAÇÃO DO VOO. INCONTESTÁVEL O DEFEITO NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO, SENDO LEGÍTIMO O PLEITO DE REPARAÇÃO CIVIL. DANOS MORAIS COMPROVADOS NÃO EM FACE DO CANCELAMENTO DO VOO E SIM EM RAZÃO DA FALTA DE ASSISTÊNCIA ÀS AUTORAS, APÓS O CANCELAMENTO. TRANSTORNOS E CONSTRANGIMENTOS QUE ULTRAPASSARAM OS MEROS DISSABORES COTIDIANOS. QUANTUM INDENIZATÓRIO RAZOAVELMENTE ARBITRADO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. SENTENÇA MANTIDA NOS INTEGRAIS TERMOS. [10]
Lado outro, o estudo do panorama jurisprudencial sobre o tema demonstra que as defesas mais comumente arguidas pelas companhias aéreas estão associadas às excludentes de responsabilidade consubstanciadas em caso fortuito e culpa exclusiva da vítima ou de terceiros. Na maioria dos casos, todavia, as alegações de força maior são afastadas ante a qualificação das causas como fortuito interno, enquanto as tentativas de imputar a culpa do atraso de voo a terceiros ou à própria vítima não são normalmente acolhidas pelo Poder Judiciário.
Em regra, as companhias aéreas alegam caso fortuito em situações associadas às intempéries climáticas e à reorganização do tráfego aéreo. Contudo, ambos os fatos são entendidos pela jurisprudência como fortuitos internos, isto é, riscos associados à própria atividade de transporte aéreo. Assim sendo, a ocorrência de atrasos e/ou cancelamentos em decorrência de problemas climáticos e da reorganização do tráfego aéreo, segundo a jurisprudência pátria, não exime o fornecedor de transportes da responsabilidade de reparar os danos oriundos de ambas as situações. Veja-se os exemplos abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO ADESIVO. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. TRANSPORTE AÉREO. ATRASO DE VOOS. PERDA DE CONEXÃO. ALEGAÇÃO DE REENGENHARIA DE TRÁFEGO AÉREO COMO EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE. ADVENTO INERENTE AO RISCO DO NEGÓCIO QUE NÃO PODE SER REPASSADO AO CONSUMIDOR. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR QUE DEVE SER REGULADA PELA CONVENÇÃO DE MONTREAL APENAS NO QUE DIZ RESPEITO AO DANO MATERIAL, NÃO SE APLICANDO, CONTUDO, AO DANO MORAL CONFIGURADO. VALOR INDENIZATÓRIO ARBITRADO. R$8.000,00. DESTOANTE DOS PARÂMETROS ADOTADOS POR ESSA CORTE DE JUSTIÇA. MAJORAÇÃO. ALEGAÇÃO DE DANOS MATERIAIS NÃO COMPROVADOS. ACOLHIDA EM PARTE. RECURSOS CONHECIDOS. APELO DA RÉ PROVIDO PARCIALMENTE. APELO ADESIVO DO AUTOR PROVIDO PARCIALMENTE. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. [11]
Indenizatória danos materiais e morais - Transporte aéreo Cancelamento de voo em decorrência de condições meteorológicas adversas – Sentença de parcial procedência, condenando a ré ao pagamento de indenização por danos morais - Aplicação do CDC Responsabilidade objetiva da companhia aérea (art. 14 do CDC)- Embora a cancelamento do voo tenha ocorrido em razão de más condições climáticas, a companhia aérea não prestou qualquer tipo de assistência material ao autor - Violação ao art. 14 da Resolução 141/2010 da ANAC – Clara situação de fortuito interno, diante da total ausência de assistência material ao autor, em nada atuando a ré para minimizar as consequências dos transtornos suportados pelo passageiro – Danos morais caracterizados- Indenização arbitrada em consonância com os princípios da razoabilidade e ponderação - Recurso negado.* Juros de mora – Dano moral – Tratando-se de responsabilidade contratual, os juros de mora incidem desde a citação e não do arbitramento – Jurisprudência do STJ – Recurso negado. Recurso negado. [12]
Também é comum a alegação de ocorrência de evento de força maior pelas companhias quando os atrasos e/ou cancelamentos são oriundos de problemas técnicos relativos à ocorrência de falhas em seu sistema informatizado. Não obstante, o racional sobre a configuração de fortuito interno – associado ao risco da própria atividade da aviação – também é mantido pela jurisprudência diante deste cenário fático. Veja-se a título de exemplo:
APELAÇÕES – INDENIZATÓRIA – TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL – CANCELAMENTO DE VOO E EMBARQUE NO DIA SEGUINTE, SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. 1 – DANOS MORAIS – Cancelamento de voo e embarque no dia seguinte – Danos morais caracterizados – Precedentes – Imbróglio causado por falha no sistema informatizado da ré, que confessa tal fato – Fortuito Interno - Problemas técnicos - Dever de indenizar caracterizado – Danos morais de considerável gravidade – Pais em viagem ao exterior, acompanhado de dois filhos ainda crianças, de 07 e 03 anos – Falha da Companhia Aérea, que fez com que tivessem de permanece por tempo além do planejado em outro país – Verba fixada, sem exageros, em R$ 10.000,00 (dez mil reais), para cada vítima do evento, importe que não destoa do que fixado por este E. Tribunal em casos nos quais os danos morais decorrentes de problemas advindos de atraso em voos internacionais são de considerável amplitude. 2 – DANOS MATERIAIS – Danos provocados por conduta da transportadora requerida – Dever de indenizar caracterizado – Fortuito interno - Quantum indenizatório – Correta a sentença ao condenar a ré ao pagamento do valor pleiteado pelos autores, notadamente considerando que a ré não fez prova do alegado prévio reembolso de valores. SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. [13]
Com efeito, o êxito das companhias aéreas neste tipo de ação indenizatória somente é verificado quando o evento causador do atraso/cancelamento tem realmente o condão de romper o nexo de causalidade entre a conduta da empresa e os danos suportados pelos consumidores. Apenas nestes casos é que a responsabilidade do fornecedor de serviços é afastada, isto é, quando da identificação de verdadeiro caso fortuito ou de evento cuja culpa é exclusivamente da vítima/terceiro.
A título de exemplo, tem-se julgado que qualificou o atraso decorrente de diligência sanitária da ANVISA em voo como um evento de força maior, capaz de justificar o atraso do transporte, in verbis:
TRANSPORTE AÉREO. ATRASO DE VOO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DA EMPRESA RÉ. EVENTO DANOSO DECORRENTE DE FATO PROVOCADO POR CASO FORTUITO, COM IMPEDIMENTO DETERMINADO PELA ANVISA EM VIRTUDE DE SUSPEITA DE PASSAGEIRO INFECTADO COM SARAMPO. NECESSIDADE DE AÇÕES SANITÁRIAS DE DESINFECÇÃO DA AERONAVE VISANDO À INCOLUMIDADE E SEGURANÇA DOS PASSAGEIROS. COMPROVADO FATO MODIFICATIVO DO DIREITO AUTORAL. SENTENÇA PARCIALMENTE PROCEDENTE, COM CONDENAÇÃO DA RÉ EM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NO IMPORTE DE R$ 5.000,00 (CINCO MIL REAIS). REFORMA DA SENTENÇA PARA JULGAR IMPROCEDENTES OS PEDIDOS. RECURSO DA PARTE RÉ CONHECIDO E PROVIDO. [14]
No mesmo diapasão, tem-se julgado que qualificou a não realização de teste de Covid-19 por passageiro como culpa exclusiva da vítima pelo atraso que originou percalços e prejuízos pela não observância da regulamentação sanitária, in verbis:
RECURSOS INOMINADOS SIMULTÂNEOS. CONSUMIDOR. GOL E TAP. IMPEDIMENTO PARA EMBARQUE EM VOO INTERNACIONAL. EXAME COVID-19. DESPACHO E EXTRAVIO DE BAGAGEM. PEDIDOS DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. SENTENÇA QUE JULGOU OS PEDIDOS PARCIALMENTE PROCEDENTES, CONDENANDO OS RÉUS NA RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS PELAS PASSAGENS E POR DANOS MORAIS. GOVERNO ESTRANGEIRO QUE EXIGIA EXAME RT-PCR NEGATIVO PARA COVID-19 EM ATÉ 72 HORAS ANTES DO EMBARQUE, INCLUSIVE PARA CIDADÃOS PORTUGUESES PROVENIENTES DE VOO FORA DO ESPAÇO DA UNIÃO EUROPÉIA. EXAMES DOS AUTORES QUE NÃO SE ENQUADRA NA HIPÓTESE. IMPEDIMENTO PARA EMBARQUE QUE FOI LEGÍTIMO E LEGALMENTE PREVISTO. CULPA EXCLUSIVA DOS AUTORES NESTE PONTO. DANOS MATERIAIS NÃO CONFIGURADOS. EXTRAVIO DE BAGAGEM. RÉUS QUE DEVERIAM CONFERIR A DOCUMENTAÇÃO E EXAMES DOS AUTORES AINDA NA ORIGEM DOS VOOS. TAP QUE DEVERIA PROVIDENCIAR A RETENÇÃO DAS BAGAGENS. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. INDENIZAÇÃO ARBITRADA EM VALOR EXCESSIVO E NÃO RAZOÁVEL. SENTENÇA REFORMADA. RECURSOS CONHECIDOS E PARCIALMENTE PROVIDOS. [15]
O cenário jurisprudencial e normativo exposto permite a conclusão de que os fornecedores de serviços de transporte aéreo, em regra, responderão pelos danos que tenham nexo causal direto com atrasos e/ou cancelamentos de voos e extravio de bagagens, independente da comprovação de culpa quando as vítimas são consumidores.
A responsabilidade das companhias aéreas somente é afastada diante da comprovação de uma das hipóteses de excludente de responsabilidade, sendo que questões associadas às imprevisões climáticas, à queda de sistema de informática e à reorganização de tráfego aéreo são qualificadas como fortuito interno em razão do risco da atividade. Ressalta-se, ainda, que a prestação de informações e assistência adequada às vítimas é questão determinante na configuração ou não da falha na prestação dos serviços.
No que tange ao aspecto do dano propriamente dito, o estudo de casos revela uma virada importante do entendimento jurisprudencial sobre a configuração dos danos morais.
Antigamente, o dano moral decorrente deste contexto era qualificado como dano in re ipsa, sendo presumido do simples atraso/cancelamento de voo. Todavia, houve a construção de um novo entendimento jurisprudencial a partir de relevante acórdão de relatoria da Min. Nancy Andrighi, no bojo do qual se entendeu que, para a configuração do dever de indenizar, o abalo psicológico alegado pelo consumidor deve ser comprovado e depende da ocorrência de um fato extraordinário – capaz, por si, de caracterizar os prejuízos e o sofrimento decorrentes da situação concreta.
Neste sentido, faz mister conferir a ementa do julgado:
DIREITO DO CONSUMIDOR E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. CANCELAMENTO DE VOO DOMÉSTICO. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. 1. Ação de compensação de danos morais, tendo em vista falha na prestação de serviços aéreos, decorrentes de cancelamento de voo doméstico. 2. Ação ajuizada em 03/12/2015. Recurso especial concluso ao gabinete em 17/07/2018. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é definir se a companhia aérea recorrida deve ser condenada a compensar os danos morais supostamente sofridos pelo recorrente, em razão de cancelamento de voo doméstico. 4. Na específica hipótese de atraso ou cancelamento de voo operado por companhia aérea, não se vislumbra que o dano moral possa ser presumido em decorrência da mera demora e eventual desconforto, aflição e transtornos suportados pelo passageiro. Isso porque vários outros fatores devem ser considerados a fim de que se possa investigar acerca da real ocorrência do dano moral, exigindo-se, por conseguinte, a prova, por parte do passageiro, da lesão extrapatrimonial sofrida. 5. Sem dúvida, as circunstâncias que envolvem o caso concreto servirão de baliza para a possível comprovação e a consequente constatação da ocorrência do dano moral. A exemplo, pode-se citar particularidades a serem observadas: i) a averiguação acerca do tempo que se levou para a solução do problema, isto é, a real duração do atraso; ii) se a companhia aérea ofertou alternativas para melhor atender aos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da companhia aérea a fim de amenizar os desconfortos inerentes à ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros. 6. Na hipótese, não foi invocado nenhum fato extraordinário que tenha ofendido o âmago da personalidade do recorrente. Via de consequência, não há como se falar em abalo moral indenizável. 7. Recurso especial conhecido e não provido, com majoração de honorários. [16]
A virada de entendimento ocorreu no julgamento do Resp n.1.584.465/MG , em 2018, e foi sendo consolidada até a prolação do acórdão supracitado, sendo, hoje, dominante no âmbito do STJ. No julgado abaixo, de relatoria do Min. Raul Araújo, publicado em 2020, o entendimento foi aplicado ao caso concreto e autorizou a conclusão de que o consumidor não comprovou a ocorrência de fato extraordinário capaz de justificar a reparação por danos morais requeridos. Veja-se:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TEMPESTIVIDADE VERIFICADA. RECONSIDERAÇÃO DA DECISÃO DA PRESIDÊNCIA. DIREITO DO CONSUMIDOR. ATRASO EM VOO DOMÉSTICO. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO. COMPANHIA AÉREA QUE FORNECEU ALTERNATIVAS RAZOÁVEIS PARA A RESOLUÇÃO DO IMPASSE. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. DANO MATERIAL NÃO COMPROVADO. AGRAVO PROVIDO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. A inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, não é automática, dependendo da constatação, pelas instâncias ordinárias, da presença ou não da verossimilhança das alegações ou da hipossuficiência do consumidor. Precedentes. 2. A jurisprudência mais recente desta Corte Superior tem entendido que, na hipótese de atraso de voo, o dano moral não é presumido em decorrência da mera demora, devendo ser comprovada, pelo passageiro, a efetiva ocorrência da lesão extrapatrimonial sofrida. 3. Na hipótese, o Tribunal Estadual concluiu pela inexistência de dano moral, uma vez que a companhia aérea ofereceu alternativas razoáveis para a resolução do impasse, como hospedagem, alocação em outro voo e transporte terrestre até o destino dos recorrentes, ocorrendo, portanto, mero dissabor que não enseja reparação por dano moral. 4. Nos termos da jurisprudência desta Corte, em regra, os danos materiais exigem efetiva comprovação, não se admitindo indenização de danos hipotéticos ou presumidos. Precedentes. 5. Agravo interno provido para reconsiderar a decisão agravada e, em novo exame, negar provimento ao recurso especial. [17]
Mesmo antes da solidificação deste entendimento, também é possível identificar casos ilustrativos do nascedouro de sua ratio essendi na jurisprudência do STJ, como por exemplo, o caso em que a Min. Maria Isabel Gallotti, em 2012, condenou a companhia aérea ao pagamento de danos morais em razão de o consumidor ter perdido as últimas horas de vida de um ente querido por causa do atraso do transporte. O fato, claramente, qualifica-se como evento extraordinário capaz de gerar o dever de reparação dos danos morais configurados, comprovados e ainda qualificados como “gravíssimos”, in verbis:
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ATRASO DE VÔO. RELAÇÃO DE CONSUMO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. DANOS MATERIAIS INEXISTENTES. DANOS MORAIS. 1. A responsabilidade civil das companhias aéreas em decorrência da má prestação de serviços é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, o que implica a solidariedade entre todos os responsáveis pelo dano sofrido pelo consumidor. Precedentes. 2. Atraso de vôo de nove horas, que impediu a chegada do autor a tempo de presenciar as últimas horas de vida de seu pai. Dano moral gravíssimo. 3. Agravo regimental parcialmente provido. [18]
Por derradeiro, no que se refere à quantificação dos danos morais e materiais em decorrência de atraso/cancelamento de voo e/ou extravio de bagagem, o que a jurisprudência ensina é que (i) os danos morais devem ser arbitrados conforme as peculiaridades do caso concreto e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade; e (ii) os danos materiais observam a extensão dos prejuízos patrimoniais comprovados pelos consumidores.
IV – Conclusões
A título de conclusão, pode-se dizer que existem diversas legislações regulamentando a execução e fiscalizando a qualidade do serviço de transporte aéreo, sendo que a aplicação das leis ao caso concreto dependerá das peculiaridades do contexto fático-probatório.
Em suma: (i) aplica-se as normas internacionais diante de pedidos de danos materiais oriundos de extravio de bagagem em voo internacional; (ii) aplica-se o Código de Defesa do Consumidor r diante de pedidos de danos morais oriundos de extravio de bagagem e/ou atraso e cancelamento de voos internacionais; (iii) aplica-se o Código de Defesa do Consumidor r aos casos de voos nacionais; e (iv) as normas especiais e o Código Civil l são aplicados de forma subsidiária aos casos de prestação de serviços de transporte aéreo não oriundos de relações de consumo.
Em termos gerais, no que se referem às relações de consumo, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor permite a extração dos seguintes predicados jurídicos para os casos estudados:
STJ - REsp: 1341364 SP 2012/0181875-7, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 19/04/2018, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/06/2018, g.n., in https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/595923700/recurso-especial-resp-1341364-sp-2012-0181875-7 ↑
STJ - AgInt no AREsp: 1472850 SP 2019/0080932-9, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 01/12/2020, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/12/2020/ In: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1206284856/agravo-interno-no-agravo-em-recurso-especial-agint-no-aresp-1472850-sp-2019-0080932-9 ↑
REsp 1289629/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA ↑
REsp 1289629/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA ↑
STJ - REsp: 1745642 SP 2017/0137510-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 19/02/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/02/2019). In: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/679135861/recurso-especial-resp-1745642-sp-2017-0137510-8 ↑
STF - RE: 1303821 SP 1119488-93.2018.8.26.0100, Relator: CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 21/01/2021, Data de Publicação: 25/01/2021. ↑
STJ - REsp: 1842066 RS 2019/0299804-4, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 09/06/2020, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/06/2020 ↑
TJ-BA - RI: 01855750520198050001, Relator: MARTHA CAVALCANTI SILVA DE OLIVEIRA, QUARTA TURMA RECURSAL, Data de Publicação: 06/05/2021) ↑
STJ - REsp: 450669 RJ 2002/0028717-1, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Julgamento: 12/11/2002, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 10/03/2003 p. 236 ↑
TJ-BA - RI: 00022937720208050146, Relator: MARY ANGELICA SANTOS COELHO, QUARTA TURMA RECURSAL, Data de Publicação: 08/03/2021 ↑
TJ-BA - APL: 05075864320188050274, Relator: CYNTHIA MARIA PINA RESENDE, QUARTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 22/04/2020) ↑
TJ-SP - APL: 10954663920168260100 SP 1095466-39.2016.8.26.0100, Relator: Francisco Giaquinto, Data de Julgamento: 22/02/2019, 13ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/02/2019 ↑
TJ-SP - AC: 11093284320178260100 SP 1109328-43.2017.8.26.0100, Relator: Sergio Gomes, Data de Julgamento: 18/09/2018, 37ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 19/09/2018 ↑
TJ-BA - RI: 00613942920198050001, Relator: JUSTINO DE FARIAS FILHO, TERCEIRA TURMA RECURSAL, Data de Publicação: 14/04/2021 ↑
TJ-BA - RI: 00 985882920208050001, Relator: ALBENIO LIMA DA SILVA HONORIO, PRIMEIRA TURMA RECURSAL, Data de Publicação: 17/02/2021 ↑
STJ - REsp: 1796716 MG 2018/0166098-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 27/08/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/08/2019 RB vol. 661 p. 199 ↑
STJ - AgInt no AREsp: 1520449 SP 2019/0166334-0, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 19/10/2020, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/11/2020 ↑
STJ - AgRg no AgRg no REsp: 689257 PR 2004/0133691-2, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 28/08/2012, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/09/2012. ↑
Ótimo artigo!
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