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quinta-feira, 15 de outubro de 2020


Um peso, onze medidas: as diferentes decisões dos ministros do STF envolvendo processos criminais semelhantes



Publicado por Anderson Gaspar

Imagine a seguinte situação (real): uma mulher entra no supermercado e furta uma peça de carne, três tabletes de caldo e um pedaço de queijo muçarela. O valor total dos produtos furtados é de aproximadamente R$130. Ela é presa em flagrante e denunciada pelo Ministério Público pelo crime de furto capitulado no artigo 155 do Código Penal.

O juiz de primeiro grau decide absolver a ré sumariamente, considerando o princípio da insignificância (ou bagatela)[1].

O Ministério Público interpõe apelação criminal. Para o MP, o valor dos produtos não poderia ser considerado insignificante por ser superior a 10% do salário mínimo vigente. Argumenta, ainda, que os seguranças do supermercado suspeitavam que a mulher já tivesse realizado a mesma conduta noutra ocasião.

Os desembargadores da 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acolhem a tese apresentada pelo MP impondo a reforma da sentença absolutória e o prosseguimento da instrução criminal contra a acusada.

A Defensoria Pública agrava a decisão dos desembargadores, reiterando o pedido de aplicação do princípio da insignificância, já que a subtração dos produtos trouxe mínima lesividade ao patrimônio da vítima. Comprova, ainda, que a acusada é ré primária, não possui antecedentes criminais e que os produtos furtados foram devidamente restituídos.

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça nega provimento ao pedido da Defensoria e mantém a decisão de prosseguimento da ação penal.

A Defensoria impetra um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal.

No STF, o HC recebe a relatoria do ministro Gilmar Mendes que, em decisão monocrática, reconhece a plausibilidade dos argumentos da Defensoria no tocante a aplicação do princípio da insignificância e restabelece a sentença de absolvição da ré.

Nas palavras do ministro Gilmar Mendes:

Ante o caráter eminentemente subsidiário que o Direito Penal assume, impõe-se sua intervenção mínima, somente devendo atuar para proteção dos bens jurídicos de maior relevância e transcendência para a vida social. Em outras palavras, não cabe ao Direito Penal como instrumento de controle mais rígido e duro que é ocupar-se de condutas insignificantes, que ofendam com o mínimo grau de lesividade o bem jurídico tutelado. Desse modo, só cabe ao Direito Penal intervir quando outros ramos do direito demonstrarem-se ineficazes para prevenir práticas delituosas (princípio da intervenção mínima ou ultima ratio), limitando-se a punir somente condutas mais graves dirigidas contra os bens jurídicos mais essenciais à sociedade (princípio da fragmentariedade) (...) Diante do exposto, destaco que, no caso em apreço, o prejuízo material foi insignificante, pois os objetos foram restituídos à vítima, não tendo a conduta, assim, causado lesividade relevante à ordem social, havendo que incidir, por conseguinte, o postulado da bagatela.

2. Fato idêntico. Conclusão diferente.

Situação semelhante ocorreu numa cidade do interior de São Paulo.

Um homem entrou em uma loja e furtou dois frascos de xampu avaliados em R$20. Após o furto, o homem foi preso. Na audiência de custódia, o juiz converteu a prisão em flagrante em prisão preventiva, considerando a reincidência do réu em crimes da mesma espécie.

No julgamento em primeira instância, o homem foi condenado a 3 anos e 6 meses de prisão em regime inicialmente fechado com base em sua reincidência.

O habeas corpus impetrado por sua defesa no Tribunal de Justiça de São Paulo foi negado sob a alegação de que o réu possuía antecedentes criminais e era reincidente específico.

O Superior Tribunal de Justiça decidiu igualmente e manteve o acusado preso.

Ao impetrar um HC no STF, a defesa alegou que o único argumento utilizado para a decretação da prisão era a reincidência do réu em crimes patrimoniais da mesma espécie. Mas que as decisões anteriores desconsideravam que o delito foi cometido sem violência ou grave ameaça e que valor dos produtos furtados era irrisório. Sendo aquele motivo insuficiente para justificar uma pena tão severa de prisão em regime fechado.

A defesa também argumentou que a manutenção da prisão preventiva acabava expondo o réu à contaminação pela Covid-19 mencionando, inclusive, recomendação específica do Conselho Nacional de Justiça[2] com orientações nesse sentido. Entre as recomendações, há a de reavaliação das prisões provisórias como forma de reduzir os riscos de disseminação do novo coronavírus.

Por fim, a defesa pediu a revogação da prisão e sua substituição por medida cautelar diversa.

A ministra Rosa Weber, relatora do HC no STF, indeferiu monocraticamente o pedido da defesa, mantendo o réu preso.

De acordo com a ministra Rosa Weber:

Ao exame dos autos, verifico que a decisão exarada pela Corte Superior se encontra fundamentada, apontando as razões de seu convencimento para rechaçar a tese defensiva. Em análise de cognição sumária, não detecto a presença dos pressupostos autorizadores da concessão da medida liminar com a imediata revogação da prisão preventiva do paciente. Ante o exposto, indefiro o pedido de liminar.

3. Valoração da insignificância atrelada à subjetividade do operador do Direito (?)

No novo habeas corpus impetrado pela defesa do réu na Suprema Corte, o Ministro Dias Toffoli acatou, monocraticamente, o argumento da defesa e determinou a substituição da prisão do réu por outras medidas cautelares previstas no artigo 319 do CPP[3].

De acordo com o ex-presidente do STF, ministro Dias Toffoli:

Não se nega que o risco real da reiteração delitiva, evidenciado pela contumácia é motivo idôneo para justificar a prisão preventiva, na linha de precedentes. Todavia, não vislumbro, na atual quadra vivenciada, a prisão preventiva - última ratio das medidas cautelares - como a melhor solução para a hipótese de um furto de 2 (dois) shampoos. Primeiro porque, penso haver outras medidas cautelares contempladas no art. 319 do CPP, que, a meu sentir, são suficientes à contenção do periculum libertatis evidenciado do paciente, pela contumácia delitiva. Essas medidas, como já reconhecido pela Corte, podem ser tão onerosas ao implicado quanto a própria prisão. Segundo porque, a Recomendação nº 62 do CNJ advertiu os magistrados quanto à máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva, tudo com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus da Covid-19 (art. 4º, inciso III).

4. Breve reflexão

As decisões proferidas pelos ministros do STF tratam de causas semelhantes com interpretações distintas[4]. Nesse ponto, pode surgir algum questionamento sobre a (des) semelhança dos casos apresentados, pois, no primeiro a acusada não possuía antecedentes criminais, enquanto no segundo, o réu era reincidente habitual.

Porém, destaca-se que o STF possui precedentes no sentido de considerar que a reincidência não é suficiente para impedir a aplicação do princípio da insignificância.

Um desses julgados (HC 155.920), decidido monocraticamente pelo ministro Celso de Mello, resultou na absolvição de uma mulher condenada a pena de prisão pelo furto de duas peças de queijo minas avaliadas em R$40.

Interessante notar que para além das discussões acerca da tipicidade material da conduta[5], um dos pontos centrais nas decisões dos magistrados diz respeito a (ir) relevância do encarceramento dos acusados considerando a "insignificância" dos delitos ou, até mesmo, do valor patrimonial auferido no cometimento de tais delitos.

Isso porque, é comum encontrarmos na jurisprudência decisões que buscam equacionar o peso da lei - nos casos envolvendo crimes patrimoniais de pequena monta cometidos sem violência ou grave ameaça - com o complexo problema penitenciário brasileiro cuja deficiência é, por si, um entrave à ressocialização dos presos - finalidade do direito penal.

No contexto de superlotação e condições degradantes do cárcere, surgem medidas judiciais que "tentam" ser mais eficazes tanto no tocante a punição quanto na almejada recuperação do criminoso. Essas medidas, que são polêmicas do ponto de vista social, buscam priorizar ações distintas do encarceramento, a depender do caso.

Não é à toa que, nesse ponto, surgem acaloradas discussões, já que a temática é de grande relevo e merece abundante debate.

No entanto, o ponto principal desse artigo tem a ver com as diferentes decisões oriundas do mais importante tribunal do país (STF) que, exatamente por ser tão importante, merece toda a nossa atenção, já que é dele que emanam as mais relevantes decisões que balizam todo o poder judiciário.

Quando é deste Tribunal que procedem decisões tão díspares envolvendo causas semelhantes precisamos ficar vigilantes. Até porque, a Corte suprema é a principal responsável pela (in) segurança jurídica em nosso país.

Nesse sentido, embora seja composto por onze ministros, não parece razoável que tenhamos 11 Supremos Tribunais Federais. Pois, essa é a impressão passada à sociedade: a de que a conclusão de uma causa (ainda que haja várias causas análogas) dependerá de qual ministro será o responsável pela decisão - embora todos afirmem seguir o (in) controverso critério legal do livre convencimento motivado[6].

Talvez, por isso, seja tão importante os ministros do STF darem maior importância às decisões colegiadas em detrimento das monocráticas. Afinal, o Tribunal mais importante do país é um órgão colegiado por excelência. Sendo certo que a Constituição Federal garante aos que recorrem ao STF o direito de serem julgados pelo plenário (ou turma) e não por um magistrado individualmente, como ocorre no juízo singular de primeiro grau.

Acredita-se que essas sejam questões relevantes para que a Corte Suprema do nosso país não ponha em risco a segurança jurídica e a sua própria credibilidade como órgão máximo da Justiça.

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FONTES:

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 62/2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 25.09.2020.

FOLHA DE SÃO PAULO. Gilmar absolve mulher que furtou picanha no dia em que Rosa condena jovem que furtou xampu. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/07/gilmar-absolve-mulher-que-furtou-picanha.... Acesso em 02.07.2020.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 187.500. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5944069. Acesso em: 25.09.2020

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 188.467. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5957723. Acesso em: 25.09.2020.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 155.920. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5443963. Acesso: 25.09.2020

[1] O princípio da insignificância não possui previsão legal em nosso ordenamento jurídico penal. Todavia, é uma construção jurisprudencial bastante sólida nos tribunais superiores, sendo reconhecida quando presentes os seguintes elementos, cumulativos e não alternativos: 1. ofensividade mínima da conduta do agente; 2. reduzido grau de reprovabilidade; 3. inexpressividade da lesão jurídica causada e; 4. ausência de periculosidade social.

[2] A Recomendação nº 62 do CNJ editada em março deste ano (2020) define uma série de recomendações a juízes para o tratamento da situação dos presos em meio a pandemia de Covid-19. Essas orientações não são regras que devem ser seguidas obrigatoriamente, mas servem de baliza para que os juízes analisem cada caso individualmente.

[3] O artigo 319 do CPP descreve expressamente as nove medidas cautelares diversas da prisão, que são: 1. comparecimento periódico em juízo; 2. proibição de acesso ou de frequentar determinados lugares; 3. proibição de manter contato com determinadas pessoas; 4. proibição de ausentar-se da Comarca, necessária para a investigação ou instrução; 5. recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga; 6. suspensão do exercício da função pública ou de atividade de natureza econômica; 7. internação provisória; 8. fiança; e 9. monitoração eletrônica (tornozeleira).

[4] Os casos podem ser considerados semelhantes na medida em que tratam de delitos exclusivamente patrimoniais, cometidos sem o emprego de violência (física ou moral) ou grave ameaça, e com mínima ofensividade ao bem jurídico tutelado. As decisões dos ministros do STF referentes aos dois casos narrados foram publicadas no mesmo dia (30.06.2020) e tiveram bastante repercussão, chamando a atenção do autor.

[5] A tipicidade material tem o objetivo de delimitar quais condutas realmente possuem relevância para o Direito Penal. Contudo, pode-se considerar, a depender do caso concreto, que não há tipicidade material, ante a insignificância da lesão ao bem jurídico protegido pela norma (patrimônio). Assim, ante a ausência de tipicidade material, o fato será considerado atípico e, embora a conduta gere lesão a bem jurídico de terceiro, o resultado será irrelevante ao direito penal, não se justificando a sua utilização para o caso concreto.

[6] O livre convencimento motivado é o critério legal que admite a livre apreciação da prova pelo juiz de acordo com sua consciência. Mas o juiz deve se ater às provas contidas nos autos para fundamentar sua decisão.

Isso ocorre de forma diversa no cotidiano dos tribunais. Embora devesse servir para afastar a subjetividade de uma decisão, observa-se o oposto. Muitas vezes a aplicação do critério do livre convencimento motivado faz com que a lei seja suplantada e, ao invés de afastar a subjetividade e a discricionariedade do julgador, acaba por prestigiá-las.


17 Comentários

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Ponto chave do artigo: se o STF é o guardião da constituição e o principal órgão do judiciário e com a incumbência de transmitir segurança jurídica, não pode este denotar decisões tão discrepantes sob a mesma temática!
Insegurança jurídica total para um país, uma nação ter uma Suprema Corte tão desonrosa quanto esta!

Reflexão muito importante, com leitura bastante clara e acessível para quem não é da área. Parabéns!!!

Ponto importantíssimo que destaco do texto.

É assustador as diferentes decisões oriundas do mais importante tribunal do país (STF) que, exatamente por ser tão importante, merece toda a nossa atenção, já que é dele que emanam as mais relevantes decisões que balizam todo o poder judiciário.

Quando é deste Tribunal que procedem decisões tão díspares envolvendo causas semelhantes precisamos ficar vigilantes. Até porque, a Corte suprema é a principal responsável pela (in) segurança jurídica em nosso país.

Lamentável.

Ótimo texto para refletir.
Precisamos ficar atentos sempre.


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