Ter de agachar, nua, para ser revistada é inadmissível
"Acham que somos culpadas por eles estarem lá". Revistas vexatórias torturam mulheres e crianças, física e psicologicamente
Publicado por Pragmatismo Político E JUS BRASIL
Revista vexatória trata inocentes como culpados (Reprodução)
No
domingo passado, a caminho da casa da minha avó, passei em frente a
Penitenciária Dutra Ladeira, localizada no município de Ribeirão das
Neves/MG. Sob o sol do meio-dia, uma imensa fila de mulheres – jovens e
idosas -, e algumas crianças aguardavam o momento de entrar em mais um
dia de visita. Muitas estavam lá desde às cinco da manhã.
Outra
fila se formava nas imediações da Dutra. De ônibus e carros. Motoristas
diminuíam a velocidade gradativamente para verem de perto as mulheres
que, cheias de sacolas nas mãos, contornavam o muro do presídio.
Pareciam estar diante de um verdadeiro zoológico humano, tal qual
ocorria na Europa no final do século XIX. Sem qualquer tipo de proteção,
a elas eram dirigidos olhares carregados de fetichismo, desprezo e
escárnio.
Se
do lado de fora a espera é longa, do lado de dentro da penitenciária,
mulheres e crianças são condenadas pelo “crime” de ter parentesco com os
detentos.
Como pena, são submetidas a revistas vexatórias, que
violam os seus corpos e ferem a sua dignidade. Uma garota, a quem
chamarei de G. C., me contou que são obrigadas a se despir por completo,
fazer agachamentos e abrir o ânus e a vagina com as mãos para provar
que não portam drogas, armas ou chips de celulares. Tudo sob o olhar de
agentes penitenciárias e das crianças. Uma verdadeira afronta à Constituição com a conivência do Estado.
Com autorização de G. C., cujo pai e namorado estão encarcerados, reproduzo o que ela me relatou:
A
visita é humilhante. Você entra numa sala com uma agente penitenciária.
Daí, tira a roupa toda e agacha três vezes. Depois, deitamos em uma
maca e abrimos as pernas. Fazemos força, é força mesmo. Eu chorava
depois disso. Tínhamos que abrir a boca para elas verem se não tinha
nada escondido. Depois soltar o cabelo. Eu chegava no pátio para ver o
meu namorado chorando, pois [as agentes] acham que somos culpadas por
eles estarem lá. Elas olham a comida perto do lixo. Cortam o biscoito
todo e ainda por cima ficam reclamando, pois enchemos as vasilhas. Só
sabemos se o preso está de “castigo” ou foi transferido na hora, pois
eles não ligam para avisar.
Ao reler essas palavras, fui tomada por uma sensação imensa de impotência. O que fazer diante de tamanha violência?
Não
tenho a vaga noção do que é passar por tudo isso. Meu pai, meu irmão,
meus amigos não estão presos. Minha mãe também não. Minhas irmãs já se
foram. Não tenho filhos. Jamais cruzei os portões de uma casa de
detenção. O mais próximo que cheguei desse universo foi através da
leitura de alguns artigos da antropóloga Alba Zaluar e de “Estação
Carandiru”, livro do médico Dráuzio Varela. Ouvindo “Diário de um
detento”, dos Racionais Mc’s, pude imaginar. Somente imaginar… Porém,
nada disso impede que eu fique indignada diante de tamanha violência e
opressão.
Em busca de algo que sinalizasse uma esperança, mesmo
que remota, de reversão dessa situação degradante vivenciadas pela
garota e pelas mulheres e crianças da fila, descobri que, segundo dados
da Organização Rede Justiça Criminal, no Estado de São Paulo, entre 2010
e 2013, de cada 10.000 visitantes, apenas 0,03% portavam itens
considerados proibidos. Tais números revelam que o objetivo dessas
práticas além de humilhar as mulheres, é inibir as visitas, uma vez que
muitas desistem de visitar seus filhos e companheiros para não terem que
passar por esse tipo de abuso.
Descobri que aguarda votação na
Câmara dos Deputados o projeto de lei de autoria da senadora Ana Rita
(PT-ES), que proíbe a realização de revistas vexatórias. Um alento!
Descobri ainda que a Rede Justiça Criminal lançou uma campanha nacional contra as revistas íntimas nos presídios.
Através do seu site é possível enviar mensagens ao presidente do
Congresso, senador Renan Calheiros, solicitando que o projeto de lei
seja aprovado com urgência.
Descobri também que, além de lamentar
e me indignar, podemos participar, exigir o fim dessas revistas
degradantes e desumanas, como outras pessoas e grupos já fazem.
G.
C., talvez você não leia esse texto, mas ele é para você, que
generosamente partilhou comigo memórias tão íntimas e dolorosas. É para
todas as mulheres e crianças que eu vi na fila na porta da
penitenciária. Para todas as mulheres que, pelo fato de terem seus
companheiros, filhos ou amigos reclusos atrás das grades, são torturadas
física e psicologicamente. Para as mulheres que todo domingo têm a sua
condição humana negada. Luana Tolentino é professora e historiadora. É
ativista dos movimentos negro e feministas.
Fonte: Pragmatismo Político
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