A maioridade penal é cláusula pétrea cara-pálida PARTE 02
O
modelo clássico de Justiça Penal, fundado na crença de que a pena
privativa de liberdade seria suficiente para, por si só, resolver a
questão da violência, vem cedendo espaço para um novo modelo penal, este
baseado na ideia da prisão como extrema ratio e que só se justificaria para casos de efetiva gravidade. Passa-se gradativamente de uma política paleo rrepressiva ou de hard control,
de cunho eminentemente simbólico (consubstanciada em uma série de leis
incriminadoras, muitas das quais eivadas com vícios de
inconstitucionalidade, aumentando desmesurada e desproporcionalmente a
duração das penas, inviabilizando direitos e garantias fundamentais do
homem, tipificando desnecessariamente novas condutas, etc.) para uma
tendência despenalizadora, traduzida em leis como a que ora nos
referimos ou como a que criou os Juizados Especiais Criminais (Lei n.º 9.099/95).[1]
Hoje,
portanto, ainda que o nosso sistema penal privilegie induvidosamente o
encarceramento (acreditando, ainda, na função dissuasória da prisão), o
certo é que a tendência mundial de alternativizar este modelo clássico
vem penetrando no Brasil e tomando força entre os nossos melhores
doutrinadores. Penalistas pátrios consagrados como Luiz Flávio Gomes,
Cezar Roberto Bitencourt, Damásio de Jesus, Miguel Reale Júnior, René
Ariel Dotti, e tantos outros, já se debruçaram sobre a matéria. Este
último, aliás, lembrando Ferri, afirma que “a luta contra os excessos
do poder punitivo não é recente. Ela é apenas reafirmada em atenção às
novas perspectivas de causas antigas.”[2]
É
indiscutível que a pena de prisão em todo o mundo passa por uma crise
sem precedentes. A ideia disseminada a partir do século XIX segundo a
qual a prisão seria a principal resposta penológica na prevenção e
repressão ao crime perdeu fôlego, predominando atualmente “uma atitude pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional”[3], como pensa Cezar Roberto Bitencourt.
É
induvidoso que o cárcere deve ser concebido como última via para a
problemática da violência, pois não é, nunca foi e jamais será solução
possível para a segurança pública de um povo.
É de Hulsman a seguinte afirmação: “Em inúmeros casos, a experiência do processo e do encarceramento produz nos condenados um estigma que pode se tornar profundo. Há estudos científicos, sérios e reiterados, mostrando que as definições legais e a rejeição social por elas produzida podem determinar a percepção do eu como realmente ‘desviante’ e, assim, levar algumas pessoas a viver conforme esta imagem, marginalmente. Vemo-nos de novo diante da constatação de que o sistema penal cria o delinquente, mas, agora, num nível muito mais inquietante e grave: o nível da interiorização pela pessoa atingida do etiquetamento legal e social.”[4]
O
próprio sistema carcerário brasileiro revela o quadro social reinante
neste País, pois nele estão “guardados” os excluídos de toda ordem,
basicamente aqueles indivíduos banidos pelo injusto e selvagem sistema
econômico no qual vivemos; o nosso sistema carcerário está repleto de
pobres e isto não é, evidentemente, uma “mera coincidência”. Ao
contrário: o sistema penal, repressivo por sua própria natureza, atinge
tão-somente a classe pobre da sociedade. Sua eficácia se restringe,
infelizmente, a ela. As exceções que conhecemos apenas confirmam a
regra.
E isto ocorre porque, via de regra, a falta de condições
mínimas de vida (como, por exemplo, a falta de comida), leva o homem ao
desespero e ao caminho do crime, como também o levam a doença, a fome e a
ausência de educação na infância. Assim, aquele que foi privado durante
toda a sua vida (principalmente no seu início) dessas mínimas condições
estaria mais propenso ao cometimento do delito, pelo simples fato de
não haver para ele qualquer outra opção; há exceções, é verdade, porém
estas, de tão poucas, apenas confirmam a regra.
Aliás, a esse respeito, há uma opinião bastante interessante de Maria Lúcia Karam, segundo a qual “hoje,
como há duzentos anos, mantém-se pertinente a indagação de por que
razão os indivíduos despojados de seus direitos básicos, como ocorre com
a maioria da população de nosso país, estariam obrigados a respeitar as
leis.”[5]
De forma que
esse quadro socioeconômico existente no Brasil, revelador de inúmeras
injustiças sociais, leva a muitos outros questionamentos, como por
exemplo: para que serve o nosso sistema penal? A quem são dirigidos os
sistemas repressivo e punitivo brasileiros? E o sistema penitenciário é
administrado para quem? E, por fim, a segurança pública é, efetivamente,
apenas um caso de polícia?
Ao longo dos anos a ineficiência da
pena de prisão na tutela da segurança pública se mostrou de tal forma
clara que chega a ser difícil qualquer contestação a respeito. Em nosso
País, por exemplo, muitas leis penais puramente repressivas estão a todo
o momento sendo sancionadas, como as leis de crimes hediondos, a prisão
temporária, a criminalização do porte de arma, a lei de combate ao
crime organizado, etc, sempre para satisfazer a opinião pública
(previamente manipulada pelos meios de comunicação), sem que se atente
para a boa técnica legislativa e, o que é pior, para a sua
constitucionalidade. E, mais: o encarceramento como base para a
repressão.
Assim, por exemplo, ao comentar a lei dos crimes hediondos, Alberto Silva Franco afirma que ela, “na
linha dos pressupostos ideológicos e dos valores consagrados pelo
Movimento da Lei e da Ordem, deu suporte à ideia de que leis de extrema
severidade e penas privativas de alto calibre são suficientes para pôr
cobro à criminalidade violenta. Nada mais ilusório.”[6]
Querer,
portanto, que a aplicação da pena de privação da liberdade de
adolescentes de dezesseis anos resolva a questão da segurança pública é
desconhecer as raízes da criminalidade, pois de nada adiantam leis
severas, criminalização excessiva de condutas, penas mais duradouras ou
mais cruéis… Vale a pena citar o grande advogado Evandro Lins e Silva,
que diz:
“Muitos acham que a severidade do sistema intimida e acovarda os criminosos, mas eu não tenho conhecimento de nenhum que tenha feito uma consulta ao Código Penal antes de infringi-lo.”[7]O mesmo jurista, Ministro aposentado do STF, em outra oportunidade afirmou: “precisamos despenalizar alguns crimes e criar punições alternativas, que serão mais eficientes no combate à impunidade e na recuperação do infrator (…). Já está provado que a cadeia é a universidade às avessas, porque fabrica criminosos, ao invés de recuperá-los.”
A
miséria econômica e cultural em que vivemos é, sem dúvida, a
responsável por este alto índice de violência existente hoje em nossa
sociedade; tal fato se mostra mais evidente (e mais chocante) quando se
constata o número impressionante de crianças e adolescentes infratores
que já convivem, desde cedo e lado a lado, comum sistema de vida
diferenciado de qualquer parâmetro de dignidade, iniciando-se logo na
marginalidade, na dependência de drogas lícitas e ilícitas, na
degenerescência moral, no absoluto desprezo pela vida humana (inclusive
pela própria), no ódio e na revolta. Para Vico Mañas, é preciso “despertar
a atenção para a relevante questão do adolescente infrator, conscientes
de que, enquanto não se estabelecer eficaz e efetiva política pública
de enfrentamento dos problemas verificados nessa área, será inútil
continuar punindo a população adulta, como também continuará sendo
inútil, para os juristas, a construção de seus belos sistemas teóricos”.[8]
Tenho
repetido, cotidianamente, que a nossa realidade carcerária é
preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias,
abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados
ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los; e
há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de
lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábricas
de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro
lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de
solução, muitas das vezes, torna-se mais uma via crucis, pois são homens
fisicamente libertos, porém, de tal forma estigmatizados que tornam-se
reféns do seu próprio passado.[9]
Hoje,
o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o
cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do
descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas
alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros; este
homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao
crime, ao cárcere (só não volta se morrer). Imagine um adolescente de
dezesseis anos?
Bem a propósito é a lição de Antônio Cláudio Mariz de Oliveira: “Ao
clamar pelo encarceramento e por nada mais, a sociedade se esquece de
que o homem preso voltará ao convívio social, cedo ou tarde. Portanto,
prepará-lo para sua reinserção, se não encarado como um dever social e
humanitário, deveria ser visto, pelo menos, pela ótica da
autopreservação.” (Folha de São Paulo, 06/06/2005).
O Professor de Sociologia da Universidade de Oslo, Thomas Mathiesen avalia que “se
as pessoas realmente soubessem o quão fragilmente a prisão, assim como
as outras partes do sistema de controle criminal, as protegem – de fato,
se elas soubessem como a prisão somente cria uma sociedade mais
perigosa por produzir pessoas mais perigosas -, um clima para o
desmantelamento das prisões deveria, necessariamente, começar já. Porque
as pessoas, em contraste com as prisões, são racionais nesse assunto.
Mas a informação fria e seca não é suficiente; a falha das prisões
deveria ser ‘sentida’ em direção a um nível emocional mais profundo e,
assim fazer parte de nossa definição cultural sobre a situação.”[10]
Vale
a pena citar, mais uma vez, Lins e Silva, pela autoridade de quem, ao
longo de mais de 60 anos de profissão, sempre dignificou a advocacia
criminal brasileira e a magistratura nacional; diz ele:
“A prisão avilta, degrada e nada mais é do que uma jaula reprodutora de criminosos”, informando que no último congresso mundial de direito criminal, que reuniu mais de 1.000 criminalistas de todo o mundo, “nem meia dúzia eram favoráveis à prisão.”[11]
Ademais,
as condições atuais do cárcere, especialmente na América Latina, fazem
com que, a partir da ociosidade em que vivem os detentos, estabeleça-se o
que se convencionou chamar de “subcultura carcerária”, um sistema de
regras próprias no qual não se respeita a vida, nem a integridade física
dos companheiros, valendo intra muros a “lei do mais forte”, insusceptível, inclusive, de intervenção oficial de qualquer ordem.
Já no século XVIII, Beccaria, autor italiano, embora clássica, já afirmava: “Entre
as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos crimes, é
necessário, portanto, escolher os meios que devem provocar no espírito
público a impressão mais eficiente e mais perdurável e, igualmente,
menos cruel no organismo do culpado.”[12]
Por sua vez, Marat, embora editada em Paris no ano de 1790, já advertia que “es
un error creer que se detiene el malo por el rigor de los suplicios, su
imagen se desvanece bien pronto. Pero las necesidades que sin cesar
atormentan a un desgraciado le persiguen por todas partes. Encuentra
ocasión favorable? Pues no escucha más que esa voz importuna y sucumbe a
la tentación.”[13]
Para
concluir, vejamos, a propósito, a lição de Érica Babini do Machado
(Doutora em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco e
Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de
Pernambuco e da Universidade de Pernambuco) e Marília Montenegro de
Mello (Doutora em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal
de Santa Catarina e Professora de Direito Penal e Criminologia da
Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de
Pernambuco), em artigo intitulado “Nas ruas, o eco à redução da violência estatal perpassa necessariamente o apoio à não redução da idade penal”:
“É notória a ocupação das ruas por todo o Brasil. População insatisfeita com suas instituições, ativamente demandando atenção dos poderes públicos, no exercício da democracia. Algumas exigências são uníssonas, como investimentos em educação e saúde e especialmente a redução da violência estatal na repressão destes movimentos, outras não. Não é sobre a falta de unidade que aqui se quer abordar, mas a preocupação diz respeito a questões que:
1) são construídas com base em informações superficiais, na maioria das vezes distorcidas pela mídia;
2) democracia não significa maioria e quantidade. Comecemos pelo fim. A compreensão da democracia perpassa a salvaguarda de direitos fundamentais como consagração da Dignidade da Pessoa Humana. Não se restringe a números em votação, o que consagraria a forma, destituindo o conteúdo (Oliveira, 2010).
Nesse sentido, a democracia não se reduz a mero sistema político, é ela que garante a ideia do Estado de Direito, o qual não cumpre apenas os princípios formais de legalidade, igualdade… mas vai além. Quer-se dizer que a democracia convive com a indeterminação (Lefort, 1991), cujo fundamento último é o reconhecimento da dignidade da pessoa (Rabenhorst, 2001, p. 48), a qual, nem mesmo pela maioria pode ser aviltada. É nesse sentido racional do debate político que se entende que a população deve ser “empoderada” de argumentos sobre as suas reivindicações, a fim de que os esforços da ida às ruas não sejam despiciendos, a partir de demandas inconciliáveis com o respeito à dignidade humana. Volta-se a dizer, a pluralidade é essência da democracia (e por isso variadas as reclamações políticas), que em seus fundamentos não dispõe de valores absolutos, exceto o valor que a faz existir: o próprio homem eis “o ‘ethos’ da moralidade democrática” (Rabenhorst, 2001, p. 48). Resta claro que os direitos fundamentais não necessitam do consentimento da maioria da população, devendo ser garantidos sempre. Não valendo, portanto, o argumento de que a maioria da população é a favor do rebaixamento da menoridade penal.
“Ninguna mayoría, se ha dicho, puede decidir la supresión de un inocente o la privación de los derechos fundamentales de un individuo o un grupo minoritario; y tampoco puede dejar de decidir las medidas necesarias para que a un ciudadano le sea asegurada la subsistencia y la supervivencia. En suma, el principio de la democracia política, relativo al quién decide, se encuentra subordinado a los principios de la democracia social relativos a qué no es lícito decidir y a qué es lícito dejar de decidir” (Ferrajoli, 1997, p. 865).
A relação entre a democracia e os direitos humanos não pode restringir-se apenas aos direitos políticos, mas deve atingir também os direitos econômicos, sociais e culturais, razão pela qual não pode reduzir-se à realização de eleições: “A construção de uma democracia real e o fortalecimento do Estado de Direito hão de dar-se à luz da interrelação ou indivisibilidade de todos os direitos humanos” (Cançado Trindade, 1993, p. 211). Então, para que haja uma exigência dos direitos humanos é necessária a existência de um Estado Democrático de Direito, em que “derechos fundamentales y democracia, a pesar de todas las tensiones, entren en una inseparable asociación” (Alexy, 1995, p. 136).
É com base nessas considerações e na tentativa de produzir conhecimento a partir de informações que se pretende munir a população de informações a respeito da PEC 33/2011 que visa reduzir a idade penal para 16 anos e do Projeto de Decreto Legislativo do Senado 539/2012, que tem como objeto a convocação de Plebiscito para consulta dos eleitores no primeiro turno das eleições de 2014 sobre a alteração da maioridade penal. Vejamos:
A) O adolescente é um ser em desenvolvimento da sua personalidade. Extremamente informado, cada vez mais cedo depara com uma gama de escolhas e decisões a tomar. No entanto, informação não se confunde com maturidade, ponderação de consequências ante as escolhas. Os adolescentes são impulsivos, subestimam riscos, suscetíveis ao stress, são mais instáveis no sentido de controlar suas emoções. Desse modo, as decisões contam apenas com os efeitos a curto prazo, sem mencionar a necessidade de condutas específicas para integração, num movimento de pertencimento (Mercurio, 2010). Os jovens parecem procurar uma obtenção de prestígio e saliência social, as quais passam a ser alcançadas por condutas de riscos, justificadas como a busca de novas experiências de prazer e emoção. Afirma-se que “sem rebeldia e sem contestações não há adolescência normal” (Osório, 1992). Por isso é viável afirmar que a normalidade da adolescência é contestadora, arredia, desbravadora e ousada, razão pela qual a adolescência é infratora (e isto é um pleonasmo!); no entanto, o que se costuma afirmar é que somente alguns o são. Na verdade, nem toda transgressão é delinquência, razão pela qual este status (delinquente), além de transitório, não está incorporado na estrutura cognitivo-emocional; até porque com o amadurecimento dos adolescentes, pequenas infrações são deixadas de lado, ao passar por uma fase chamada peack-age (Albrecht, 1990), sem necessidade de cerco punitivo.
B) A Convenção dos Direitos da Criança de 1989 é um março de superação do paradigma tutelar, quando “menores” eram objeto e não sujeitos de direito. À CDC somam-se vários outros documentos que se convencionou denominar Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança, os quais têm por fundamentos os valores em Direitos Humanos. O Brasil é pioneiro na América Latina em aderir à Convenção, por meio do Decreto 99.710/1990, de modo que crianças e adolescentes têm direitos e garantias fundamentais atribuídos a qualquer cidadão brasileiro. Pela primeira vez na história das constituições, o Brasil prevê dois artigos específicos (227 e 228) sobre a temática, neste último estabelece a idade penal aos 18 anos, adequando-se às recomendações internacionais.
C) A definição de uma idade penal deriva da condição da personalidade infantojuvenil, que está em processo de desenvolvimento, garantindo esse desenvolvimento sadio e paulatino. Ou seja, inimputabilidade, que não se confunde com irresponsabilidade, torna-se um direito fundamental (Sposato, 2009), razão pela qual é cláusula pétrea e impassível de modificação, tal como define o art. 60, § 4.º, IV, da CF. Aliás, o estabelecimento de uma idade mínima para início da responsabilização atende a instruções das Regras de Beijing (item 4.1).
D) Desse modo, não pode haver alteração da idade penal, nem mesmo mediante plebiscito. Somente uma nova Constituinte poderia alterar o direito à inimputabilidade. Outrossim, vigora no Brasil o princípio da proibição do retrocesso (Silva, 2010), segundo o qual a sociedade não pode abandonar conquistas históricas e sociais, especialmente as positivadas na Constituição. Para além, considerando ser o Brasil signatário daqueles documentos internacionais, prévios à EC 45, e sendo fundados em direitos humanos, aqueles têm natureza supralegal, dado o julgamento dos RE 466.343/SP e RE 349.703 do STF. Ou seja, os ditos tratados internacionais situam-se entre as normas constitucionais e a legislação infraconstitucional, de modo que não podem afrontar/revogar os dispositivos da Carta Magna, porém, têm o condão de paralisar os conteúdos normativos expressos nas legislações infraconstitucionais que com eles sejam conflitantes.
E) A pretensão social de redução da idade penal decorre de um falso conhecimento da realidade da infância e juventude brasileiras, seja porque a alta criminalidade não é praticada por adolescentes, seja porque os atos infracionais não são graves. Segundo o IBGE de 24.461.666 de adolescentes no Brasil, apenas 0,1425% representa a população dos que se encontram em conflito com a lei, o que em números absolutos significa 34.870; bem diferente do que passa a mídia, no seu contexto de alarme social. Além disso, a maioria dos atos infracionais são roubo, tráfico de entorpecentes, homicídio. Outros delitos com proporções muito menores (CNJ, 2011).
F) Há um mito da impunidade. Os adolescentes em conflito com a lei são devidamente responsabilizados por seus atos infracionais, e na maioria das vezes mais do que os adultos. A afirmativa decorre do desconhecimento jurídico e da realidade das medidas socioeducativas, que são muito assemelhadas às penas estabelecidas na legislação penal. A exemplo disso é que no sistema infracional não há previsão do instituto da prescrição (coube à jurisprudência Súm. 338 do STJ), da execução de medidas socioeducativas (a Lei do Sinase não prevê a concessão de benefícios, tal como estabelece a Lei de Execução Penal), da cominação proporcional e individualizada de penas e delitos (todas as medidas socioeducativas têm prazo mínimo e máximo para a reavaliação, independentemente do tipo de ato infracional praticado). Não somente. As condições de internação são de superlotação. Para registrar, em Pernambuco, existem 12 unidades de internação, com o total de 737 vagas, mas com 13.719 internos, o que significa um déficit de 12.982 vagas. No que tange ao encaminhamento dos processos no Judiciário é comum se perceber internações desprovidas de fundamento legal, como é o caso da prática de tráfico de entorpecente (inclusive o STJ promulgou a Súmula 492 proibindo tal hipótese) em clara violação ao princípio da legalidade, mas eufemisticamente justificado pelo caráter pedagógico da medida.
G) A crença popular de que a lei penal é capaz de promover defesa social ampara-se na promessa de prevenção geral, a qual, porém, inexiste. Tal assertiva pode ser percebida no âmbito dos adultos com comparação entre os dados carcerários e a produção legislativa em matéria penal desde a década de 90. Ou seja, o efeito simbólico da lei penal de intimidação não funciona.
H) A sociedade desconhece a realidade socioeconômica e o grau de vitimização da população infantojuvenil. Segundo o IBGE em 2005 e 2006, o Brasil tinha 24.461.666 adolescentes entre 12 e 18 anos, entre os quais existem discrepantes diferenças sociais: há maior pobreza nas famílias dos adolescentes não brancos do que nas de brancos. Outrossim, mais de 8.600 crianças e adolescentes foram assassinados no Brasil em 2010, ficando o país na quarta posição entre os 99 países com as maiores taxas de homicídio de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos, um índice que cresce vertiginosamente ao longo dos anos (Waiselfisz, 2012, p. 47). Em 2012, mais de 120 mil crianças e adolescentes foram vítimas de maus-tratos e agressões. Desse total de casos, 68% sofreram negligência, 49,20% violência psicológica, 46,70% violência física, 29,20% violência sexual e 8,60% exploração do trabalho infantil, conforme levantamento feito entre janeiro e agosto de 2011 (Abrinq, 2012). Em 34 instituições brasileiras, pelo menos um adolescente foi abusado sexualmente e são eles vítimas de homicídio. Como se percebe há uma extrema violência praticada por adultos contra crianças e adolescentes pobres e negros, de modo que é possível alegar que, se se argumenta que a criminalidade praticada por adolescentes aumenta, esta assertiva é o atestado da incompetência estatal no que tange ao abandono. Porém, no espaço social alarmado e amedrontado, é politicamente mais eleitoreiro falar em soluções simplistas de segurança pública, em vez de cuidar da infância pobre e vitimizada brasileira. Ou seja, a penalização dos problemas sociais é a política de pão e circo do poder público ante a sociedade desinformada e acrítica.
I) O reflexo das desigualdades sociais e do desinteresse governamental pela infância e juventude pobre e marginalizada é refletido nos espaços institucionalizados das medidas socioeducativas. Em 2002 (Paiva) já verificava que os adolescentes submetidos às medidas socioeducativas eram 90% do sexo masculino; com idade entre 16 e 18 anos (76%); da raça negra (mais de 60%); não frequentavam a escola (51%), não trabalhavam (49%) e viviam com a família (81%) quando praticaram o delito. Não concluíram o ensino fundamental (quase 50%); eram usuários de drogas (85,6%). Recentemente, verificou-se que esse quadro não sofreu modificações (Ministério da Justiça, 2010). Portanto, o que se verifica é que a desigualdade social entre adolescentes na população brasileira é reproduzida no âmbito dos adolescentes ditos infratores, sendo fácil compreender que os problemas sociais são resolvidos no espaço da institucionalização, de modo que é possível perceber que a proposta de redução da idade penal é uma forma simplista de retardar/desvirtuar a responsabilidade estatal e da sociedade civil organizada de inclusão social e resgate cidadão da infância marginalizada.
j) Não obstante todas essas questões, nada adianta a transferência do adolescente para o sistema carcerário com déficit de 84,9% de vagas (Ministério da Justiça, 2012). Sem levar em conta a cultura violenta e criminógena do cárcere, a qual se instalará fortemente nos adolescentes, visto estarem os estes em desenvolvimento da sua personalidade. Enfim, todos esses argumentos são levantados no sentido de alertar a população de que a demanda nas ruas, entre outras, de redução da violência estatal, perpassa necessariamente a diminuição da violência do Estado perante a adolescência marginalizada, e que a defesa da redução da idade penal, contrariamente ao que se reivindica, é uma carta de alforria para o Estado continuar violentando adolescentes pobres, desconhecidos das políticas públicas, mas perseguidos pelos mecanismos de segurança pública. Nesse momento, os sentimentos da população são de emotividade e, associados com o desconhecimento da realidade e de consequências a longo prazo, esta termina por agir muito mais na pauta dos instintos. Isso porém não pode afetar a racionalidade que justifica a existência de poderes públicos para a governança cujo dever é garantir a essência que une e sustenta a democracia a Dignidade da Pessoa Humana.”
Estas palavras tomo-as como a minha conclusão.
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